Depois de longa negociação comigo mesmo, resolvi encarar a instabilidade no Oriente Médio e partir para Israel e Jodânia. Queria aproveitar as milhas da Lufthansa, que só me confirmou disponibilidade 2 dias antes da viagem. O jeito, portanto, foi arriscar com outra companhia e aí começam os problemas desse início de viagem. Pois bem, a companhia tapa buraco é a TAP, sobre a qual tinha boas referências ... até o momento do embarque. O avião demorou a se colocar no finger e, quando já estávamos todos dentro, ficamos sabendo que um painél eletrônico estava quebrado e que deveria ser trocado. Ora, pois, o comandante achava que seria uma coisa rápida, mas demorou 2 (eu disse DUAS) horas ... dentro do avião e com o ar condicionado desligado por um bom tempo.
Claro que já estava consciente de que perderia a conexão para Roma, onde amigos me esperavam para ser levado a Sorrento, onde passaria o resto do domingo. Ora, pois, de novo, eis que chego ao balcão de atendimento da companhia "purtuguesa" e, depois de enfrentar uma fila (só colocaram duas raparigas para nos atender), recebo meu novo cartão de embarque. Antes de entregá-lo, já meio temerosa, a moçoila disse que os vôos diretos para Roma estavam todos lotados e que teria que me colocar num vôo para Lisboa (desci no Porto), de onde pegaria o avião para Roma.
Já sabendo que isso não me cheirava bem, perguntei a que horas chegaria em Roma e depois de perguntinhas aqui e acolá, ela me disse com mais medo ainda que somente as 23:20. Somente 9 horas de atraso. Agora eu cá me pergunto: é de se espantar que os brasileiros tenham demorado tanto tempo para sair do estado de sub-desenvolvidos?
Já conheci todo o aeroporto do Porto e sei que também vou term bastante tempo lá em Lisboa. Já sei o preço de tudo! Acreditam que um sabnete líquido da Occitaine custa € 17 (algo como R$ 40,00) e no Brasil o mesmo produto custa não menos de R$ 120,00. Depois reclamam que brasileiro sai do país comprando tudo o que vê na frente. Com essa diferença de preços, até eu, que não sou consumista fico com vontade de comprar.
Bem, em 30 minutos, se não der mais nada de errado, parto para Lisboa. Algo me diz que a mala não vai chegar ... Ainda bem que o seguro é grande.
Clepsidra da vida é o título de um dos livros de Rita Levi-Montalcini, médica e pesquisadora, prêmio Nobel de Medicina em 1986. Nesse livro, ela conta fatos de sua longa vida concluída no penúltimo dia de 2012. Intitular esse blog com o nome de seu livro é uma pequena homenagem que faço a essa mulher que é um exemplo a ser seguido. Em Clepsidra da Vida, torno públicos idéias, experiências, memórias, alegrias, tristezas e um grande prazer de escrever!
domingo, 9 de outubro de 2011
domingo, 18 de setembro de 2011
NATIVIDADE
Tinha apenas quinze anos quando o destino decidiu privá-la da companhia de seus pais e, por meio de parentes paternos, deixá-la sob a proteção de insigne instituição religiosa. Permaneceu nesse ambiente de singular harmonia, protegida da incompreensão humana, por cerca de dois anos. Durante esse tempo, costurava, tocava instrumentos musicais, cantava e encantava a todos com sua graciosa presença.
Deixou esse seu segundo lar que a vida havia lhe dado apenas para construir outro, agora na companhia de um jovem viúvo e de seus filhos, que abraçou com o mesmo amor que dedicaria aos outros sete que adviriam da união com seu esposo, homem de senso prático e que ganhava o seu sustento e de sua família executando os mais variados trabalhos em madeira.
Criatura de espírito angelical, caracterizado por singular doçura no trato com as pessoas, ficou radiante, como toda mãe, ao saber que dali a alguns meses daria a luz a seu primeiro filho. A gravidez, embora exaurisse seu delicado corpo, transcorreu tranquilamente e o rebento veio ao mundo sem quaisquer anomalias, sob o teto de uma velha tia, habitante de cidade não muito distante do local onde vivia o casal e para onde o dedicado esposo a havia levado para que ali contasse com toda a assistência e atenção que esses momentos requerem.
A casa, de extrema simplicidade, contava com apenas dois cômodos. Num deles ficavam amontoados os móveis da família, enquanto que o outro servia de abrigo para alguns animais e mantimentos. Seus ocupantes dormiam sobre esteiras, cobertores e peles de cabra estendidos pelo chão, que também serviram de leito para a jovem quando chegou o momento de seu filho vir ao mundo, auxiliada por uma experimentada profissional (leia-se parteira).
O nascimento dessa criança – um verdadeiro querubim caído dos céus, de grande beleza, semblante sereno, rosáceas bochechas e nenhuma marca ou ruga na pele, habituais nos recém-nascidos – envolveu a todos em grande alegria, chegando a comover alguns até as lágrimas.
Espalhou-se, então, a notícia de que a jovem havia sido visitada pelos anjos e que seu primogênito era um enviado de Deus, provocando a curiosidade dos habitantes daquele local que, em romaria, foram conhecê-lo, encontrando-o acomodado num berço de palha e algodão e espiado, de tanto em tanto, pelos animais do cômodo ao lado. Entre os visitantes, inúmeros parentes e vizinhos, que não deixaram de levar seus presentinhos para o recém nascido, de acordo com as possibilidades e costumes locais.
Essa história atravessou os séculos, ganhando um adereço aqui, outro ali, e acabou chegando até nós envolta por uma áurea fantasiosa, como se seu personagem principal precisasse ter uma origem miraculosa para ter se tornado uma das pessoas mais lembradas do mundo, em todos os tempos.
Para quem ainda não se deu conta, os personagens dessa história são Maria, José e o menino Jesus, que veio ao mundo da forma mais tradicional possível, sem, contudo, deixar de encantar a todos desde seu primeiro minuto de vida e por todos os séculos que se seguiram, por meio de sua mensagem de amor ao próximo, que não deixa de vir à tona em todo nascimento.
domingo, 11 de setembro de 2011
BALANÇO DE 30 ANOS DE CONFLITO
Jornais e televisões do mundo todo lembram hoje os 10 anos dos atentados nos Estados Unidos, que ceifaram em poucos minutos as vidas de cerca de 3 mil pessoas e causaram traumas irreparáveis em familiares e amigos das vítimas, bem como nos espectadores localizados em todo o mundo.
Anterior a esse incidente e a ele diretamente ligado, estão mais de 350 mil mortos e feridos em 8 anos de Guerra Irã-Iraque (para os iranianos, esse número passa dos 750 mil). Outros 100 mil soldados iraquianos perderam suas vidas nos 7 meses de conflito da Guerra do Golfo e, em 7 anos de Guerra no Iraque, fala-se em mais de 100 mil mortes de civis e um país devastado.
Porque o mundo fica tão abalado com as 3mil mortes que ocorreram em território americano e não com as mais de 550 mil (que podem muito bem ter passado de 1 milhão) que ocorreram e continuam ocorrendo no oriente médio?
Para essas pelo menos 550 mil vítimas parece não haver necessidade de derramar lágrimas. Parece que seus familiares não ficaram traumatizados. Parece que os territórios envolvidos nesse conflito não ficaram marcados. Parece que não há necessidade de evidenciar em jornais e revistas todo esse horror.
Não se trata de defender um lado em detrimento de outro, mas de abrir os olhos diante do descalabro de pessoas que acham que para suas ações nunca haverá uma reação.
E pensar que esse jogo de aliados e antagonistas tem suas peças distribuídas de acordo com interesses, no final das contas, puramente econômicos e no qual o petróleo é o ator principal ...
No final das contas, o único derrotado desses conflitos é a própria humanidade.
segunda-feira, 5 de setembro de 2011
ELOGIO PARA A LOUCURA
Ao criticar os desmandos da Igreja Católica da época, eminente a passar por um de seus mais difíceis e negros momentos, caracterizado pela Reforma e conseqüente contra-Reforma, Erasmo de Roterdã postula em seu Elogio da Loucura, livro escrito em 1509 e considerado uma das obras-primas da literatura universal, que a loucura é apreciadora da auto-depreciação. Vai mais além e, utilizando alegorias tiradas da mitologia grega, estabelece que a loucura, educada pela inebriação e pela arrogância, é irmã da vaidade, da adulação, do esquecimento, do prazer, da demência, do destempero, da falta de vontade e do sono mortal.
Martinho Lutero, contemporâneo de Erasmo de Roterdã, afirma que até os quarenta anos o homem permanece louco, mas não se dá conta disso. A partir dessa idade, passa a ter consciência de sua loucura, mas quando isso acontece, a vida já passou. Independentemente de se enxergar ou não como louco, na visão de Lutero, somos todos loucos.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, insigne filósofo alemão do século XIX, parece estar de acordo com Lutero, ao afirmar que a loucura não seria a perda abstrata da razão, mas, segundo suas próprias palavras, um simples desarranjo, uma simples contradição no interior da razão, que continua presente. Partindo desse raciocínio, o indivíduo louco passa a não ser mais encarado como alguém privado de razão, mas como alguém com uma razão ou lógica próprias, tornando possível pensar a loucura como pertinente e necessária à dimensão humana, que só se realizaria através dela.
Já para a psicologia, segundo uma definição que encontrei na Wikipedia e que de certo modo conflita com os pensamentos de Hegel, de Lutero e mesmo de Erasmo, uma vez que, alguns mais, outros menos, somos todos destemperados, vaidosos, aduladores, auto-depreciativos e, portanto, loucos, a loucura ou insânia é uma condição da mente humana caracterizada por pensamentos considerados "anormais" pela sociedade. É resultado de uma doença mental, quando não é classificada como a própria doença. Nesse caso, seriam normais somente aqueles que pensam do mesmo modo e loucos os que se atrevem, inconscientemente ou não, a desafiar essa razão.
Diante dos fatos que pude testemunhar ao longo dessa minha já não tão curta vida, tenho que discordar da psicologia, abraçar os pensamentos de Erasmo, Lutero e Hegel e acreditar que somos todos um pouco loucos. De fato, parece que nunca foi tão verdade o ditado popular que afirma termos todos um pouco de médico e de louco. O lado médico é, talvez, o mais evidente, pois todo mundo tem uma receita caseira para este ou aquele mal. Com o advento da internet, então, tem paciente que lê meia dúzia de linhas sobre uma determinada doença e já se acha no direito de discutir de igual para igual com indivíduos que estudam seis anos para conseguir o diploma, fazem dois anos de residência e continuam estudando o resto da vida, de modo a estarem sempre atualizados nos seus campos de especialização. E provavelmente é aí que se evidencia um dos primeiros casos de demência da atual sociedade. Sim, pois só sendo louco para ler um texto e já se achar médico suficiente para questionar o parecer de um médico de verdade.
Mas se essa fosse toda a loucura do mundo, ainda assim teríamos salvação. Entretanto, há casos mais graves, que passam pela corrupção na política, cujos feitos são tão inacreditáveis, que só podem ser comandados por mentes insanas. Fernando Collor, por exemplo, recentemente processou Ciro Gomes por ter enlameado seu nome. Ora, uma pessoa que tem no currículo um pai assassino, um ex-cunhado matador de aluguel, que gritava para todo mundo ouvir que tinha nascido com aquilo roxo e que foi escorraçado da presidência da república por crime de corrupção (fato nunca antes visto neste país!) não pode ser normal ao processar alguém só porque lhe chamou de safado, playboy e “cheirador de cocaína”. Talvez possamos absolvê-lo do crime de cheirar cocaína ...
E os exemplos de loucura na política não param por aí. Basta lembrar das forças ocultas que fizeram Jânio Quadros renunciar ao cargo, ou de sua filha, Tutu Quadros, que serviu de intérprete do próprio cachorro na redação de um livro (essa era louca mesmo!). E o que dizer do Lula, que comparou Dilma a Jesus Cristo durante a última campanha presidencial, ou do Maluf, que teria dito “quer estuprar, estupra, mas não mata”. E não podemos nos esquecer da Marta Suplicy que, ao ser questionada sobre as filas nos aeroportos, durante sua gestão como Ministra do Turismo, teria dito: Relaxa e goza!
Saindo do âmbito político, os casos de loucura se multiplicam mais rapidamente do que coelhos. Basta um giro pela cidade, em qualquer dia da semana, e observar o que os motoqueiros fazem no trânsito e contra suas próprias vidas. Isso sem falar nos motoristas, que vão de um lado para o outro (assumo minha parcela de culpa e me incluo nesse grupo), tentando chegar primeiro no semáforo fechado logo adiante. E os caminhoneiros, que dirigem quase sem dormir, ou os motoristas de ônibus que vão com tudo em cima de quem estiver na frente. Nem os pedestres se salvam dessa insanidade, jogando-se na frente dos carros, por acreditarem-se donos do mundo se estiverem sobre uma faixa de pedestres (isso até é verdade, mas apenas se o semáforo estiver aberto para os pedestres).
Mas há também loucos que se drogam por não aceitarem a dura realidade que a vida lhes impõe e os loucos que traficam drogas, colaborando para que outros entrem em ruína. Há maridos que surram suas esposas para compensar as humilhações a que são submetidos pelos patrões ou colegas de trabalho. Há crianças que humilham os que lhe são diferentes, embora, às vezes, o belo resida exatamente nas pequenas diferenças. Há aqueles também que são tão obcecados pelo trabalho, que não se dão conta da vida ao seu redor e aqueles que no trabalho mostram todo o seu destempero. E o que dizer dos criminosos, que ao serem pegos com a boca na botija, assumem-se loucos para se livrarem da cadeia. Pior talvez sejam seus advogados que, em troca de dinheiro, aceitam defendê-los e os fazem assumir essa loucura.
Enfim, não há como não citar os chefes de estado, ditadores que mandam e desmandam, que tem o poder de vida e de morte sobre as pessoas e que efetivamente privam inúmeros do direito básico da vida, assassinando-os ou impedindo que trabalhem, que tenham acesso à educação, que possam se alimentar, que possam cuidar de sua saúde, que possam ter amigos, uma família. Os representantes dessa categoria são tantos que poderia passar o resto da minha vida listando-os todos, mas alguns são a própria personificação da loucura, como Saddam Husseim, Muamar Kadaf, Adolf Hietler, Slobodan Milosevic, Osama Bin Laden e George W. Bush Filho (bem, é mais correto que este último seja classificado na categoria dos imbecis ao invés da de loucos).
Mas a loucura também tem seu lado positivo e, por que não dizer, corajoso e criativo. É graças a ela que temos hoje mais de 800 telas brilhantemente produzidas por Vincent Van Gogh. É também pela loucura desafiadora de homens como Alberto Santos Dumont que milhões de homens e mulheres hoje se locomovem de maneira razoavelmente rápida e segura. É pela loucura de jornalistas incrivelmente competentes que temos acesso em tempo real a informações provenientes de campos de guerra ou locais devastados pela raiva louca da natureza. É pela bravura louca dos bombeiros que vidas são salvas, às vezes colocando em risco suas próprias vidas. E é, talvez, por causa dessa mesma bravura meio insana que os bandeirantes desbravaram esse país, num caminho parcialmente seguido séculos depois pelos irmãos Vilas Boas.
E para aqueles que pensam que esse ensaio sobre a loucura não passa de uma divagação literária de alguém que não é médico e, ao que me consta, também não é louco, destaco uma notícia veiculada recentemente na Revista Piauí, intitulada “A epidemia de doença mental”, segundo a qual, cresce assombrosamente o número de pessoas com transtornos mentais e de pacientes tratados com antidepressivos e outros medicamentos psicoativos. Segundo essa matéria, muito bem redigida por Márcia Angell, uma pesquisa conduzida pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos constata que tem louco saindo pelo ladrão: 46% de um grupo de pessoas, estudadas aleatoriamente, possuem algum sintoma estabelecido pela Associação Americana de Psiquiatria e que incluem os transtornos de ansiedade (que incluem as fobias e os estresses pós-traumáticos), os transtornos de humor (parece que aqui já batemos de frente com o conceito de que depressão e loucura não têm nada a ver), os controles de déficit de atenção e os transtornos causados pelo uso de substâncias, com álcool e drogas.
Da onde vem tanta loucura? Bem, dizem alguns que tem origem no desequilíbrio de certas substâncias químicas existentes no cérebro, como a serotonina e a noradrenalina e, nesse caso, medicamentos podem ajudar. Entretanto, como os segredos do cérebro ainda são pouco conhecidos, não se sabe bem ao certo se esses medicamentos podem fazer mais mal do que bem. Pelo sim e pelo não, melhor também contar com o apoio psicológico, que talvez seja o melhor de todos os remédios. Mas para isso, é de fundamental importância que familiares, sobretudo, no limite de suas capacidades, dêem-se conta dos desvios de comportamento de seus parentes, desde pequenos, e procurem colaborar para seu ajuste, compreendendo as razões que os levam a se comportar de modo diferente, lembrando que a diferença só será negativa somente se for prejudicial a quem a possui. Afinal de contas, com tanto louco por aí, todo esforço para ajudar a diminuir a fila é válida.
segunda-feira, 29 de agosto de 2011
CÂNCER: DOENÇA OU MALDIÇÃO?
Fiquei sabendo há alguns dias atrás do afastamento de Steve Jobs da presidência da Apple, e nesta última sexta, ao navegar pela internet, vi uma imagem na qual ele, muito magro, parecia caminhar amparado pela ajuda de uma pessoa. Até aí, tudo bem, não fossem os comentários, mais de 200, que fiz questão de ler um a um. Muitos eram de solidariedade, o que é natural no caso de uma pessoa pública. A maioria, porém, ressaltava que nem a sua incrível fortuna o estava livrando dessa doença. Outros, ainda, transmitiam o mais puro sentimento de pena.
Pois bem, o que tem a ver o dinheiro com a doença? Parece que ter muito dinheiro é uma maldição e a doença grave uma punição. Desde quando dinheiro ganho honestamente, independentemente da quantidade, é pecado ou ofensa àqueles que não o têm? Tenho a sensação de ler nas entrelinhas dessas declarações uma pitada da mais pura inveja. Uma inveja do tipo “ficou rico, mas vai morrer jovem sem poder usufruir daquilo que nunca vou poder ganhar”. Quando muito, o dinheiro aqui pode ser lembrado como um coadjuvante para que tenha acesso aos caros tratamentos e, sobretudo, medicamentos que não raro devem ser consumidos por 1 ou 2 anos, quando não mais, até que a doença seja curada, ou pelo menos controlada, aumentando a sobrevida, ou melhorando a qualidade do que resta da vida.
Outro ponto que me incomodou nessas declarações foi o sentimento de pena. Para começar, se é para ter pena de alguém com uma doença grave, acho lícito que o sentimento também seja externado com os desconhecidos. Por um acaso famoso tem mais direito a pena do que os ilustres desconhecidos? Por um acaso famoso, rico, bonito, jovem e inteligente deve ser imune a doenças que, por alguma razão, devem afetar somente os que não têm nada? Afinal de contas, como já não tem nada, não vai fazer falta! Ora, se querem sentir pena, então que visitem os pacientes internados nas enfermarias do Hospital do Câncer, desenganados e muitas vezes abandonados pela família, ou quem sabe as crianças do Gracc. São milhares os casos de câncer que pululam hospitais de todo tipo, dos mais ricos aos menos afortunados.
O ponto é que os pacientes de câncer, doença que em muitos casos já tem cura, embora dolorosa e inacessível para todos, precisam de solidariedade, força, energia positiva, boas vibrações, ânimo, mas não pena, que não faz outro que os colocar ainda mais para baixo, que lhes dar a certeza de que a vida lhes está esvaindo por entre os dedos, precocemente envelhecidos. Ao invés de ter pena, é mais útil arregaçar as mangas e servir de voluntário, como as senhoras de rosa do Hospital A. C. Camargo, que levam solidariedade e companhia aos que tem nelas a única família.
Como diria Divaldo Franco, mentes que ociosas. Preferem ser solitárias em suas penas e comentários inoportunos, ao invés de serem solidárias. Ademais, não importa se a vida é curta ou longa, mas o que é feito dela e, para que tenha valido à pena, talvez bastem alguns poucos anos.
domingo, 21 de agosto de 2011
MOCINHO OU BANDIDO?
Começo a pensar que há uma inversão de valores nesse Brasil em que vivemos. Normalmente, nas histórias de ficção, há apenas um bandido que faz os mocinhos e mocinhas sofrerem ao longo de páginas e páginas até que, no final, o facínora paga por todos os seus pecados morrendo uma morte violenta, ou sendo encaminhado ao ajuste de contas com a polícia. Pois bem, ocorre que no Brasil parecem existir muito mais bandidos do que mocinhos. Pelo menos é o que se pode inferir a partir da quantidade de denúncias de crimes contra o patrimônio público que há diversas semanas teimam em não sair das primeiras páginas de jornais e capas de inúmeras revistas, sem falar na cobertura da televisão, que é mestra nesse tipo de história folhetinesca. E mesmo que me recusasse em acessar esses veículos de comunicação, fechando-me no mundo cibernético das redes sociais, ainda assim não me veria livre desse tipo de informações, muito comentadas, ainda que de modo extremamente superficial, entre os usuários do Facebook e companhia. Tem tanta notícia sobre roubalheira, que vou propor que só sejam publicadas notícias de falcatruas acima de um certo valor. Senão não se fala de outra coisa.
No fim das contas, quem deveria ser preso é o honesto, pois é ele quem legitima o corrupto no posto que ocupa. É ou não é? Deveria ser enquadrado no mínimo por crime de formação de quadrilha ou, quem sabe, falsidade ideológica, pois elege o corrupto e depois fica falando mal do sujeito.
No meio desse cenário de filme trash, ainda existem os atores coadjuvantes, que pensam estar fazendo protesto ao votar nulo, ou em branco, quando na verdade, ao fazerem isso, tornam mais fácil a vitória do corrupto, pois o sistema eleitoral brasileiro dá vitória com base nos votos válidos. Isso significa que quem vota em branco também deveria ver o sol nascer quadrado, junto com os honestos.
Isso me faz pensar se não somos nós, os honestos, os verdadeiros bandidos da história. O corrupto está lá, tentando fazer seu trabalho, e constantemente aparece alguém para desviá-lo de sua tarefa. O cidadão nem deseja toda essa exposição na mídia. Só quer cumprir a função para a qual foi eleito, que é a de tomar conta das coisas públicas. Depois, se o dinheiro é público, o corrupto também é dono dele e, portanto, não pode ser acusado de posse indevida. Além do mais, como justamente disse João Ubaldo Ribeiro em sua coluna do Estadão de hoje, prender para que, se vai ser solto logo em seguida? Coisa de honesto invejoso, que reclama por não ter conseguido subir na vida como o corrupto! Preferiu estudar, fazer MBA, mestrado, doutorado, especialização no exterior, quando para ser deputado não é preciso nem saber escrever o nome. Agora agüenta!
Para que perder tanto tempo debruçado em cima de livros? Aliás, não tem corredor de fórmula um por aí se vangloriando que se leu dez livros na vida foi muito? O negócio é por a mão na massa, mesmo que a mão tenha um dedo a menos. Para que estudar, se basta colocar um chapéu de palhaço, fazer uma graça e, em pouco tempo, ser eleito deputado com o maior número de votos da história? Para que perder tempo na escola, se sendo jogador de futebol dá para ficar famoso mais rápido e, com essa fama, ser escolhido para algum cargo público? E se não tiver dotes futebolísticos, basta tentar outro esporte ou, quem sabe, arriscar na carreira musical. Dá na mesma. O sucesso está garantido.
Os professores reclamam que ganham pouco (de pouco mais do que R$ 400 até pouco mais que R$ 1.200) porque não compreenderam esse plano para um Brasil maior iniciado há diversas décadas. Se aprender não está com nada, é lógico que o ofício de ensinar não pode ser valorizado. Depois ainda dizem que o governo não tem coerência com o que faz. Muita injustiça.No fim das contas, quem deveria ser preso é o honesto, pois é ele quem legitima o corrupto no posto que ocupa. É ou não é? Deveria ser enquadrado no mínimo por crime de formação de quadrilha ou, quem sabe, falsidade ideológica, pois elege o corrupto e depois fica falando mal do sujeito.
No meio desse cenário de filme trash, ainda existem os atores coadjuvantes, que pensam estar fazendo protesto ao votar nulo, ou em branco, quando na verdade, ao fazerem isso, tornam mais fácil a vitória do corrupto, pois o sistema eleitoral brasileiro dá vitória com base nos votos válidos. Isso significa que quem vota em branco também deveria ver o sol nascer quadrado, junto com os honestos.
E o que fazer para mudar os rumos dessa história? Bem, um jornalista outro dia, em poucas palavras, disse que não fazemos nada por sermos habitantes de uma República de Bananas. Escrevemos muito para os jornais, mas não nos unimos para manifestar nosso repúdio contra a corrupção que assola esse país a ponto de acharmos tudo normal. É até engraçado um político ser pego com dólares na cueca, ou afirmar ter ficado rico por ter ganhado na loteria diversas vezes. Chega a ser normal matar o oponente a tiros e depois conseguir eleger o filho presidente da república. É tudo tão normal que o errado parece ser certo. É tudo tão normal que bandido de filme americano, terrorista ou criminoso de guerra, quando conseguem fugir, vêem para o Brasil.
Não sei se somos uma República de Bananas, mas é fato que algo deve ser feito, embora fazer greve de fome, como está fazendo um líder político na Índia, ou tomar as praças, como estão fazendo os espanhóis, conforme exemplos do referido jornalista, não me parece ser o melhor caminho. Se passar fome servisse para alguma coisa, os somalis já teriam conseguido resolver seus problemas. Se ir para as ruas servisse para algo, as diversas passeatas que invadem a Avenida Paulista teriam tido algum efeito, além de transtornar o trânsito ou incomodar a concentração de quem trabalha na região.Será que a doença desse país, que outro jornalista apelidou recentemente com o nome de um molusco, atingiu um estado assim tão avançado que somente um tratamento de choque, segundo artigo do Daniel Piza, no Estadão de hoje, pode resolver? Provavelmente, sim. Enquanto não faltar comida no prato e o pagode para animar os finais de semana, nada vai mudar. Política antiga, usada desde a época dos romanos: pão e circo para acalmar a turbe. E se não tem pão, como teria dito Maria Antonieta, que o povo coma brioches. O problema é que, ao dizer isso, perdeu a cabeça!
Realmente, esse é o país do futuro, pois com o que temos no presente não podemos fazer muito. Para mudar os governantes, o povo também precisa mudar, instruindo-se para poder julgar, mas também para atuar. Não pode ser normal um país se mobilizar para saber quem foi o assassino de uma trama folhetinesca (e o desfecho nem foi lá essas coisas) e ignorar o assassinato da juíza carioca. Não pode se normal querer saber qual vai ser o ministro da semana a ser levado ao paredão. Não pode ser normal que alguém tenha a profissão de lobista. Não podem ser tidas como normais as coalizões entre partidos para ganhar uma eleição e a posterior retaliação dos cargos públicos como forma de pagamento pelo apoio. Não pode ser normal que um ministro seja escolhido para desempenhar uma função sem qualquer experiência na área (haja visto o deputado advogado, que virou ministro da agricultura, sem nunca ter sequer ocupado cargo de liderança). Não pode ser normal que um partido retire seu apoio porque foi punido por crime de corrupção. Não pode ser normal alguém ser eleito porque, embora roube, faz. Não pode ser normal que somente o câncer continue tirando de cena político safado que abusa da ingenuidade do povo, que ele mesmo ajuda a manter nesse estado.Ao invés de pão e circo, o povo precisa de livros para aprender a pensar pois, conforme Castro Alves, o livro quando cai n’alma, é germe que faz a palma, é chuva que faz o mar. Enquanto isso não acontecer, honestos, porém ingênuos vão continuar colocando corruptos no poder e ainda por cima vão ser chamados de bananas. Será que é pedir demais?
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
MINHA PRIMEIRA INCURSÃO NO JUDAÍSMO
Participei no último sábado, numa sinagoga de São Paulo, de uma cerimônia de casamento que, por ser minha primeira incursão no judaísmo, uma religião cheia de simbolismos, me deixou atento a tudo, a começar pelo sutil convite, antes de ingressar no recinto religioso, para que colocasse um kipá, aquele chapeuzinho no formato de calota esférica e que representa submissão do homem a Deus.
Ao adentrar na sinagoga, a primeira coisa que constatei foi a simplicidade do ambiente, muito espartano e que, por isso mesmo, pode ser comparado a um auditório. Nada de estátuas, pinturas ou qualquer outra representação de santos ou divindades, que inexistem no judaísmo.
As cadeiras eram razoavelmente confortáveis e com cestas dispostas sob as mesmas, onde são apoiados os livros religiosos utilizados nos serviços. O ambiente não era muito amplo, embora alto e protegido por uma abóboda iluminada e decorada com vitrais, que não pude observar muito, com medo de deixar meu kipá cair!As paredes do altar eram revestidas de mármore e madeira e continham escritas douradas em hebraico, cujo significado eu desconheço. Na lateral do altar, uma tribuna, onde, acredito, o rabino faz a leitura dos textos sagrados nos dias reservados a essa função. Quase na frente dessa tribuna, chamava a atenção para si um gigante castiçal de 7 velas (no caso, lâmpadas). No centro do altar, uma espécie de caramanchão, a chupá, decorado com delicadas flores e um véu branco, sob o qual os noivos receberam as bênçãos do matrimônio. Pelo que pude ler depois a respeito, a chupá representa a reunião de duas almas, inicialmente ligadas e que foram separadas ao receberem os corpos com os quais entraram no mundo material.
Durante os minutos que antecederam a cerimônia, nenhuma música para alegrar o ambiente, como é comum nas cerimônias católicas. De barulho, somente o cochichar das pessoas, em particular dos homem não judeus, comentando sobre o chapeuzinho e sobre a dificuldade de equilibrá-lo sobre a cabeça, bem como do vai-vem de pessoas tentando se acomodar.O calor se fazia um pouco intenso naquela noite, o que talvez tenha contribuído para deixar todos um pouco impacientes. A cerimônia estava marcada para começar às 19h30, mas somente às 20h00 teve início. Um atraso calculado para que o ambiente já estivesse tomado pelos convidados quando os noivos ali penetrassem.
Uma melodia com som metálico, vinda de um órgão cuja localização não pude identificar, anunciou o início da cerimônia. Abriram-se, então, as portas localizadas no fundo da sala e adentraram primeiro os padrinhos e depois ao noivo, acompanhado de sua mãe. Como num casamento católico, os padrinhos do noivo ficam num lado do altar e os da noiva em outro.A parte mais interessante desse início de casamento foi o fato do cortejo ter sido acompanhado por um dos dois rabinos que conduziram os trabalhos. Ele entrou logo após o noivo, se não me falha a memória, entoando um belo cântico em hebraico, que tirou a sisudez que até então havia reinado naquele ambiente.
Antes que a noiva entrasse, o noivo foi coberto por uma espécie de xale branco, com bordados em azul celeste. Fui pesquisar e aprendi que se chama kitel. Lembra uma mortalha e serve, entre outras coisas, para recordar que o casamento deve perdurar até a morte.A marcha nupcial acompanhou a entrada da noiva. Guiada por seu irmão, ela endossava um vestido branco e reluzente, destacado por um belíssimo buquê de copos-de-leite, com flores amarelas e acobreadas. Um longo véu coroava sua cabeça e se derramava elegantemente sobre suas costas para, somente então, acariciar suavemente o chão sobre o qual ela passava com a alegria que lhe é característica.
Como de praxe, o noivo foi até os pés do altar receber a noiva, tento o cuidado de cobrir seu rosto com o véu antes de conduzi-la à chupá. Esse ato simboliza o fato do noivo não estar se ligando à noiva pela sua beleza, obscurecida pelo véu, mas pelo que ela representa como ser humano. Além disso, por ocasião da cerimônia de casamento, o rosto da noiva reflete toda a luminosidade divina, que o véu tem a função de conter de modo a não ofuscar os que lhe estão ao redor.O aguardar do noivo pela noiva, tradição também adotada em outras religiões, simboliza o fato do casamento ocorrer por anuência dela, que manifesta seu desejo ao ir de encontro ao seu escolhido.
Como disse, a cerimônia foi conduzida por dois rabinos. O que entrou cantando era um Levy, uma espécie de assessor do que ficou o tempo todo sob a chupá, um Cohen, ou sumo-sacerdote.A cerimônia prosseguiu com a troca de alianças. Primeiro o noivo colocou a aliança no dedo indicador da mão mais forte da noiva e anunciou em voz alta que a recebia como esposa. Então, ela mostrou a todos seu dedo, consumando a união. Em seguida, foi a vez dela fazer o mesmo, pousando a aliança, que representa a união entre os dois, no dedo indicador direito do noivo, que também a mostrou a todos.
Como reza a tradição, os termos da união entre os noivos são especificados num contrato, que o Cohen recita em voz alta, primeiro em hebraico e depois numa versão compacta em português. Nesse contrato, em síntese, o noivo promete prover a noiva de tudo o que lhe for necessário, como alimento, roupas e direitos conjugais. Esse documento é da noiva, que o deve guardar como um bem precioso.Seguem, então as bênçãos, uma espécie de homilia da Igreja Católica. Nessa ocasião, o rabino destaca características dos noivos, que lhe são complementares. De um lado a noiva tem a fé, que aproximou o noivo de Deus, e de outro o noivo tem a paciência para controlar a ansiedade de sua já esposa.
Lembrou o rabino as palavras de alguém importante, mas cujo nome não me lembro: sou judeu porque aprendi a não mais ter esperanças e sim a esperar. E com essas palavras, aconselha os jovens cônjuges a não se atropelarem em ansiedades, mas a esperar pelo resultado de seus planos a dois.Nesse momento refleti sobre as semelhanças entre as religiões que, independentemente de seus simbolismos, de seus dogmas, incondicionalmente exortam a união, a paz, a compreensão entre as pessoas. Naquele ambiente estavam presentes católicos, judeus, espíritas, ateus que, apesar de suas crenças ou descrenças individuais, estavam todos ali com o objetivo único de participar da alegria daquele casal. Por que no dia-a-dia as coisas não podem ser daquele mesmo modo, com pessoas compreendendo-se mutuamente, aceitando diferenças e, talvez, vendo nelas oportunidades para crescerem interiormente e ajudando a sociedade a se tornar um ambiente melhor? Provavelmente porque, como em qualquer religião, dentro dos templos somos anjos, mas apenas traspassadas suas portas para o mundo exterior, tornamo-nos figuras irracionais. Coisas da evolução ...
Bem, a cerimônia terminou com a quebra do cálice, que representa muitas coisas, entre as quais a lembrança da destruição do Templo de Jerusalem e a espera de que um dia seja reconstruído. A destruição do templo é algo muito triste para os judeus e deve ser lembrado mesmo nos momentos mais felizes, como é o casamento.Seguiram-se abraços, música e uma bela festa, que não privou os convidados das músicas tradicionais e do momento em que os noivos, sentados em cadeiras, que representam tronos, são levantados ao ar, pois naquele dia de festa, são considerados reis.
domingo, 7 de agosto de 2011
O MELHOR DA MINHA VIDA FOI TER PODIDO AJUDAR OS DEMAIS
Meu primeiro encontro com Rita Levi-Montalcini foi, por assim dizer, dos mais impessoais. Aconteceu há pouco mais de 2 anos, talvez 3, em meu escritório, quando trabalhava num projeto de promoção do Made in Italy aqui no Brasil. Naquela ocasião, procurava todo tipo de texto que, de alguma forma, me ajudasse a provar que a Itália é um grande pólo desenvolvedor de talentos, tecnologias, design e arte. Foi então que recebi uma cópia da agenda editada pela Embaixada da Itália para o ano seguinte e que dedicava cada mês do calendário a uma personalidade italiana diferente.
Entre textos e fotos de pessoas cujos feitos gravaram seus nomes na história, como Alessandro Volta, Enrico Fermi e Galileo Galilei, lá estava ela, meio tímida, numa foto em que pousava delicadamente sua mão direita sobre um globo terrestre e com a esquerda o segurava, como se o quisesse proteger. Mas o que mais me chamou atenção nessa figura vestida de preto, já de certa idade e com o rosto sulcado por marcas do tempo, foi sua semelhança com minha avó paterna, com a qual fui, e de certa forma ainda sou, apesar de ter sido privado há muito tempo da convivência quase que diária, extremamente ligado.
Desprendendo por um momento o olhar daquela foto, que me despertou ternas lembranças e muitas saudades, comecei a ler o texto, que falava um pouco sobre a vida dessa senhora. Muito sucinta, a biografia dizia que Rita Levi-Montalcini, nascida em Turim em 22 de abril de 1909, havia se formado em medicina e que havia sido condecorada com o Prêmio Nobel de Medicina, em 1986, pela descoberta, aliás, sob condições bastante adversas, do NGF, sigla em inglês para Nerve Grouth Factor, ou fator de crescimento dos nervos, uma proteína que favorece o crescimento das células do sistema nervoso e que, segundo estudos recentes, está intimamente ligada às doenças degenerativas do cérebro, como o mal de Alzheimer e a doença de Parkinson.
Bem, tendo nascido em 1909, teria então perto de 100 anos se estivesse ainda viva e, para minha surpresa, estava. Há poucos meses desse nosso encontro, completaria um século de vida, comemorada com toda pomba e circunstância em toda a Itália. Noticiários, especiais e entrevistas em importantes programas de televisão não deixaram de marcar a data, o que, para mim, foi de grande importância para levantar informações sobre essa figura fascinante.
Conforme mais ficava íntimo dela, maior era a vontade de conhecê-la pessoalmente. Seria como conhecer uma grande personalidade, que havia vivido as maiores transformações e fatos da nossa recente história, e reencontrar minha avó, cuja lembrança suas feições insistiam em me recordar.
No meio dessa pesquisa instigante, descobri que Rita Levi-Montalcini, havia nascido numa bem estruturada família de origem hebréia, filha de um engenheiro e de uma proeminente artista plástica. Entre seus irmãos estão Gino, um dos mais famosos arquitetos italianos, e Paola, irmã gêmea, insigne pintora. A infância foi tranqüila, cercada de amor, embora de acordo com as rígidas normas de uma família vitoriana, como faz questão de sublinhar.
Conta ela numa das várias entrevistas realizadas por ocasião de seus 100 anos de nascimento que, com 5 anos de idade, havia visto um chapéu adornado com flores e cerejas que pediu para seus pais comprarem. Entretanto, seu pai recusou-se a satisfazer seu desejo, considerando-o inadequado. Pensou ela, então, porque deveria um homem, com tantos afazeres e responsabilidades, ocupar-se até mesmo da escolha das vestimentas dos filhos. Foi aí que decidiu que, em idade ainda tão precoce, decidiu que jamais se casaria, pois não poderia viver sob o comando de alguém, como exigia a sociedade da época.
Passaram-se anos e, então, começou a tomar vida sua promessa. Pediu autorização para seu pai para que pudesse estudar medicina, curso no qual se formou às portas da eclosão da segunda guerra e durante a qual teve sua única experiência na profissão, já que foi como pesquisadora que deu vazão à sua vontade de aprender. Essa escolha tinha origem na admiração pelo médico Albert Schweistzer, que havia ido para a África combater a lepra. Desejava ajudar os que sofriam.
Quiseram os fascistas que ela, não descendente da raça ariana, interrompesse sua carreira. Isso, entretanto, não aconteceu. Aliás, foi num pequeno laboratório, montado dentro de seu quarto, que ela teve o primeiro contato com o NGF, cuja existência viria a provar tempos depois, numa longa permanência nos Estados Unidos, que inclui um ano de estudos, em 1952, no Instituto de Biofísica do Rio de Janeiro, onde teve a oportunidade de conhecer Carlos Chagas Filho, com o qual travou uma longa amizade, como relata uma matéria da revista Super-Interessante, em um de seus primeiros números.
O reconhecimento pela descoberta, realizada paralelamente e independentemente por outro cientista, Stanley Cohen, veio em 1986, pelas mãos do Rei da Suécia. Em entrevistas, conta que lia um livro de Agatha Christie quando lhe ligaram para anunciar que havia sido escolhida para receber o Prêmio Nobel de Medicina daquele ano, ao que havia respondido que estava muito honrada com a notícia.
Mas esse foi apenas um de tantos coroamentos de uma longa vida, que teria tudo para se encerrar publicamente pouco depois da ida a Estocolmo, quando já contava com 77 anos, se não fosse por sua vontade de ajudar a quem precisa. Aliás, uma das frases de Rita Montalcini que mais me marcaram diz exatamente que o objetivo da vida é aprender a desinteressar-se de nós mesmos e interessarmo-nos do mundo que nos circunda, é compreender o mundo e fazer o possível para ajudar quem precisa. E com essa retórica, fundou uma ONG com sua irmã Paola, em 1992, com o objetivo de levantar fundos para ajudar as mulheres da África. Escolheu ajudar as mulheres, pois são elas as grandes desfavorecidas das sociedades de sempre, não obstante nas sociedades ocidentais tenham sido verificados grandes avanços a favor do chamado sexo frágil. Já a África, foi seu foco desde o início da carreira, mas também por concentrar nos seus diversos países grandes desigualdades, que tendem a diminuir quando a família, base da sociedade, conta com uma base sólida, na qual a figura da mulher e também mãe tem papel crucial.
Hoje, aos 102 anos, diz que não sabe quando vai morrer e que nem mesmo esperava viver uma vida tão longa. Afirma que o que interessa é o que faz a cada dia. Trabalha para que as jovens africanas estudem, prosperem e ajudem seus países. Pesquisa. Pensa.
Não fala em se aposentar. Verifica que muitos se aposentam e matam seus cérebros, abandonam-se, adoecem. Seu corpo pode enrugar, o que é inevitável, mas seu cérebro continua pensando com quando tinha 20 anos. Não vê diferença! Afirma que ao manter o cérebro ativo, ele não degenera. Ainda que os neurônios morram, os que permanecem conseguem se reorganizar para compensar a perda. Entretanto convém estimulá-los, recomenda, mantendo a curiosidade, a vontade de aprender, o empenho e a paixão pelas coisas. Desse modo, podemos não viver mais, mas vivemos melhor.
Perguntada sobre o que faria se pudesse ter 20 anos novamente, respondeu sem pestanejar: Já estou fazendo!
Nunca tive ídolos e nem achava muito razoável adorar pessoas. Entretanto, após ler tanto sobre Rita Montalcini, que quando pequena se achava um patinho feio, inferior a seus irmãos e genitores, com destacado intelecto, não pude nutrir certa vontade de conhecê-la pessoalmente.
No ano passado, fui até a sede da sua ONG, na expectativa de eventualmente encontrar com ela no elevador, ou quem sabe ter a sorte de ser recebido por ela. Não quis o destino que esse acaso ocorresse. Entretanto, estive em sua sala de reuniões, sentei-me na mesma cadeira em que se sentou em uma das recentes entrevistas para a televisão italiana, passei os olhos por seus vários prêmios e condecorações, toquei em seus livros e conversei longamente com sua assessora de muitos anos, Giuseppina Tripodi, com a qual escreveu alguns livros e da qual tirei a promessa de me levar a uma breve conversa, que seja, com esse exemplo de pessoa. Quem sabe no próximo ano, disse eu, ao que ela respondeu, com olhar meio vazio e sem a certeza de poder cumprir sua promessa: Certamente.
Recentemente fui convidado para participar de um seminário organizado pela ONG Rita Levi-Montalcini, que acontecerá no próximo dia 11 de outubro. Espero nessa ocasião conseguir finalmente conhecer Rita Levi-Montalcini.
Entre textos e fotos de pessoas cujos feitos gravaram seus nomes na história, como Alessandro Volta, Enrico Fermi e Galileo Galilei, lá estava ela, meio tímida, numa foto em que pousava delicadamente sua mão direita sobre um globo terrestre e com a esquerda o segurava, como se o quisesse proteger. Mas o que mais me chamou atenção nessa figura vestida de preto, já de certa idade e com o rosto sulcado por marcas do tempo, foi sua semelhança com minha avó paterna, com a qual fui, e de certa forma ainda sou, apesar de ter sido privado há muito tempo da convivência quase que diária, extremamente ligado.
Desprendendo por um momento o olhar daquela foto, que me despertou ternas lembranças e muitas saudades, comecei a ler o texto, que falava um pouco sobre a vida dessa senhora. Muito sucinta, a biografia dizia que Rita Levi-Montalcini, nascida em Turim em 22 de abril de 1909, havia se formado em medicina e que havia sido condecorada com o Prêmio Nobel de Medicina, em 1986, pela descoberta, aliás, sob condições bastante adversas, do NGF, sigla em inglês para Nerve Grouth Factor, ou fator de crescimento dos nervos, uma proteína que favorece o crescimento das células do sistema nervoso e que, segundo estudos recentes, está intimamente ligada às doenças degenerativas do cérebro, como o mal de Alzheimer e a doença de Parkinson.
Bem, tendo nascido em 1909, teria então perto de 100 anos se estivesse ainda viva e, para minha surpresa, estava. Há poucos meses desse nosso encontro, completaria um século de vida, comemorada com toda pomba e circunstância em toda a Itália. Noticiários, especiais e entrevistas em importantes programas de televisão não deixaram de marcar a data, o que, para mim, foi de grande importância para levantar informações sobre essa figura fascinante.
Conforme mais ficava íntimo dela, maior era a vontade de conhecê-la pessoalmente. Seria como conhecer uma grande personalidade, que havia vivido as maiores transformações e fatos da nossa recente história, e reencontrar minha avó, cuja lembrança suas feições insistiam em me recordar.
No meio dessa pesquisa instigante, descobri que Rita Levi-Montalcini, havia nascido numa bem estruturada família de origem hebréia, filha de um engenheiro e de uma proeminente artista plástica. Entre seus irmãos estão Gino, um dos mais famosos arquitetos italianos, e Paola, irmã gêmea, insigne pintora. A infância foi tranqüila, cercada de amor, embora de acordo com as rígidas normas de uma família vitoriana, como faz questão de sublinhar.
Conta ela numa das várias entrevistas realizadas por ocasião de seus 100 anos de nascimento que, com 5 anos de idade, havia visto um chapéu adornado com flores e cerejas que pediu para seus pais comprarem. Entretanto, seu pai recusou-se a satisfazer seu desejo, considerando-o inadequado. Pensou ela, então, porque deveria um homem, com tantos afazeres e responsabilidades, ocupar-se até mesmo da escolha das vestimentas dos filhos. Foi aí que decidiu que, em idade ainda tão precoce, decidiu que jamais se casaria, pois não poderia viver sob o comando de alguém, como exigia a sociedade da época.
Passaram-se anos e, então, começou a tomar vida sua promessa. Pediu autorização para seu pai para que pudesse estudar medicina, curso no qual se formou às portas da eclosão da segunda guerra e durante a qual teve sua única experiência na profissão, já que foi como pesquisadora que deu vazão à sua vontade de aprender. Essa escolha tinha origem na admiração pelo médico Albert Schweistzer, que havia ido para a África combater a lepra. Desejava ajudar os que sofriam.
Quiseram os fascistas que ela, não descendente da raça ariana, interrompesse sua carreira. Isso, entretanto, não aconteceu. Aliás, foi num pequeno laboratório, montado dentro de seu quarto, que ela teve o primeiro contato com o NGF, cuja existência viria a provar tempos depois, numa longa permanência nos Estados Unidos, que inclui um ano de estudos, em 1952, no Instituto de Biofísica do Rio de Janeiro, onde teve a oportunidade de conhecer Carlos Chagas Filho, com o qual travou uma longa amizade, como relata uma matéria da revista Super-Interessante, em um de seus primeiros números.
O reconhecimento pela descoberta, realizada paralelamente e independentemente por outro cientista, Stanley Cohen, veio em 1986, pelas mãos do Rei da Suécia. Em entrevistas, conta que lia um livro de Agatha Christie quando lhe ligaram para anunciar que havia sido escolhida para receber o Prêmio Nobel de Medicina daquele ano, ao que havia respondido que estava muito honrada com a notícia.
Mas esse foi apenas um de tantos coroamentos de uma longa vida, que teria tudo para se encerrar publicamente pouco depois da ida a Estocolmo, quando já contava com 77 anos, se não fosse por sua vontade de ajudar a quem precisa. Aliás, uma das frases de Rita Montalcini que mais me marcaram diz exatamente que o objetivo da vida é aprender a desinteressar-se de nós mesmos e interessarmo-nos do mundo que nos circunda, é compreender o mundo e fazer o possível para ajudar quem precisa. E com essa retórica, fundou uma ONG com sua irmã Paola, em 1992, com o objetivo de levantar fundos para ajudar as mulheres da África. Escolheu ajudar as mulheres, pois são elas as grandes desfavorecidas das sociedades de sempre, não obstante nas sociedades ocidentais tenham sido verificados grandes avanços a favor do chamado sexo frágil. Já a África, foi seu foco desde o início da carreira, mas também por concentrar nos seus diversos países grandes desigualdades, que tendem a diminuir quando a família, base da sociedade, conta com uma base sólida, na qual a figura da mulher e também mãe tem papel crucial.
Hoje, aos 102 anos, diz que não sabe quando vai morrer e que nem mesmo esperava viver uma vida tão longa. Afirma que o que interessa é o que faz a cada dia. Trabalha para que as jovens africanas estudem, prosperem e ajudem seus países. Pesquisa. Pensa.
Não fala em se aposentar. Verifica que muitos se aposentam e matam seus cérebros, abandonam-se, adoecem. Seu corpo pode enrugar, o que é inevitável, mas seu cérebro continua pensando com quando tinha 20 anos. Não vê diferença! Afirma que ao manter o cérebro ativo, ele não degenera. Ainda que os neurônios morram, os que permanecem conseguem se reorganizar para compensar a perda. Entretanto convém estimulá-los, recomenda, mantendo a curiosidade, a vontade de aprender, o empenho e a paixão pelas coisas. Desse modo, podemos não viver mais, mas vivemos melhor.
Perguntada sobre o que faria se pudesse ter 20 anos novamente, respondeu sem pestanejar: Já estou fazendo!
Nunca tive ídolos e nem achava muito razoável adorar pessoas. Entretanto, após ler tanto sobre Rita Montalcini, que quando pequena se achava um patinho feio, inferior a seus irmãos e genitores, com destacado intelecto, não pude nutrir certa vontade de conhecê-la pessoalmente.
No ano passado, fui até a sede da sua ONG, na expectativa de eventualmente encontrar com ela no elevador, ou quem sabe ter a sorte de ser recebido por ela. Não quis o destino que esse acaso ocorresse. Entretanto, estive em sua sala de reuniões, sentei-me na mesma cadeira em que se sentou em uma das recentes entrevistas para a televisão italiana, passei os olhos por seus vários prêmios e condecorações, toquei em seus livros e conversei longamente com sua assessora de muitos anos, Giuseppina Tripodi, com a qual escreveu alguns livros e da qual tirei a promessa de me levar a uma breve conversa, que seja, com esse exemplo de pessoa. Quem sabe no próximo ano, disse eu, ao que ela respondeu, com olhar meio vazio e sem a certeza de poder cumprir sua promessa: Certamente.
Recentemente fui convidado para participar de um seminário organizado pela ONG Rita Levi-Montalcini, que acontecerá no próximo dia 11 de outubro. Espero nessa ocasião conseguir finalmente conhecer Rita Levi-Montalcini.
domingo, 31 de julho de 2011
A MORTE DE UMA ESTRELA
Nada dura para sempre. Mesmo as estrelas morrem e, em seu leito de morte, brilham de um modo singular. Giram ao redor de si numa velocidade acima da nossa compreensão, dispersando no cosmos toda matéria da qual são constituídas. E é nesse movimento frenético que, paradoxalmente, atingem o máximo do vigor e da beleza.
Também são assim as estrelas que habitam nosso mundo, inebriando-nos com sua eloqüência, encantando-nos com sua voz, fascinando-nos com sua beleza. Estrelas criadas pela mídia, alimentadas pelo sucesso e muitas vezes desorientadas em si mesmas.
Histórias que de tanto se repetirem, chegam a nem mais surpreender. Atores, cantores, escritores, poetas e formadores de opinião de todos os tipos que vivem uma vida breve, porém intensa, como se tivessem consciência do dia e hora do momento de partir. Então produzem quase que insanamente, esquecendo-se de si próprios, deixando-se levar por falsos valores e autodestruindo-se.
Recentemente, foi Amy Winehouse quem nos deixou, depois de ter brindado o mundo com sua voz rouca, sua imagem meio retrô e, infelizmente, sucessivos escândalos. Como ela, passaram por experiências semelhantes Janis Joplin, Kurt Cobain, Elis Regina, River Phoenix, Cazuza e uma infinidade de nomes.
Vidas levadas pelo vento, arruinadas por lhes faltarem o mais basilar sentimento de preservação, comum em sociedades que valorizam o ser e não o ter, nas quais os indivíduos sabem da importância que têm para familiares e amigos e de como cada movimento que realizam pode afetar os que lhes estão ao redor.
Indivíduos com resistência moral abalada, personagens amargos, seguidores inconscientes da Doutrina Existencialista de Jean Paul Sartre, segundo a qual o sentido da vida é a morte que, como pode vir de um momento para o outro, leva-os a viver o hoje, ignorando as conseqüências dos atos, pois o amanhã pode não existir. Então, entregam-se às drogas, ao alcoolismo, às relações inconseqüentes, à violência.
Tudo é transformado no caos e é nesse ambiente que produzem suas obras, que talvez nos encantem exatamente por refletirem em acordes, palavras e sentimentos tresloucados tudo o que nossa covardia é capaz de admirar nos outros, mas repudiar em nós mesmos.
Aí vem a morte precoce e alguém diz “Mais uma estrela perdida para as drogas”, como também não tivéssemos parcela de culpa nessa perda, por alimentarmos a vaidade desses ídolos, que para nos satisfazerem mais e mais, mergulham no lado sórdido da vida. No fundo, até mesmo torcemos para que sucumbam, para que nos entretenham com mais um escândalo, tornando público algo que deveria ser tratado em família, onde o apoio nunca deveria faltar.
Pena que a mídia faz dessas pessoas, apesar de todos os defeitos e com todas as qualidades que verdadeiramente têm, mais estrelas do que aquelas que brilham com uma luz quase que etérea, como se estivessem a muitos anos-luz de nós, tímidas no meio da multidão.
Quantos sabem que João Carlos Martins foi exímio pianista, que após grave doença, hoje brilha como maestro? Alguém já ouviu falar de Aparecida Conceição Ferreira, que sem qualquer ajuda do poder público, conseguiu levantar um hospital que chegou a atender a 300 afetados pelo chamado “fogo selvagem”? Quantos foram informados que Carlos Chagas Filho, brasileiro, administrou um dos principais centros de pesquisa do mundo, no Rio de Janeiro, e para o qual afluíam cientistas de todas as partes?
Infelizmente, boas notícias não trazem o retorno publicitário desejado ... Quem sabe um dia saberemos dar valor às verdadeiras virtudes? No meio tempo, aguardemos que estrelas nasçam, cresçam, brilhem e, num átimo de tempo, tornem-se apenas buracos negros a partilharem nossa atenção com estrelas de grandeza então superior.
sábado, 30 de julho de 2011
OS CÓDIGOS DE LEONARDO DA VINCI
O Código Atlântico é considerado a mais surpreendente e importante coleção de manuscritos de Leonardo da Vinci existente no mundo: são cerca de 1.119 folhas, num total de 1.750 desenhos e, portanto, uma impressionante coleção, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto do ponto de vista qualitativo. Pode ser comparada a uma espécie de compêndio enciclopédico da obra científica e também artística de Leonardo.
Tem sua origem nas vicissitudes que envolveram os manuscritos de Da Vinci logo após a sua morte. Sabe-se que Leonardo morreu em 2 de maio de 1519, no palácio de Clos Lucé (antigamente chamado de Cloux e localizado nos arredores da corte real francesa de Amboise), onde passou a viver em 1516 a convite do Rei da França, tendo deixado em testamento todos os seus manuscritos a seu discípulo predileto, Francisco Melzi.
Francisco Melzi, filho de uma nobre família italiana, conservou todo esse material como uma relíquia, como um tesouro valioso de seu mestre. Todavia, o mesmo não ocorreu com seus herdeiros e quando veio a falecer em 1570, os descendentes de Francisco Melzi abandonaram todos os escritos de Da Vinci em um sótão da mansão da família em Vaprio d’Adda, localizada às portas de Milão, onde ficam esquecidos e descuidados por um bom tempo, até que tem início seu processo de dispersão pelo mundo.
Contrariamente a um grande número de artistas e cientistas que têm seus nomes e obras valorizados somente após a sua morte, Leonardo já era respeitado e admirado mesmo em vida e, portanto, suas obras sempre tiveram grande valor (basta lembrar que Bill Gates pagou por cada uma das folhas do Código Hammer o equivalente a US$ 1 milhão). Um valor que não foi percebido pelos descendentes de Francisco Melzi, mas que não passou em branco pelos olhos de Lélio Gavardi, preceptor da família e que furtou 13 volumes de anotações e desenhos leonardescos com a intenção de vendê-los ao Grão-Duque da Toscana, Francisco de’ Médici, apaixonado colecionador de arte. Todavia, o Grão-Duque morre em 1587 sem tê-los adquirido, o que obrigou Gavardi a procurar melhor sorte em Pisa, com seu parente Aldo Manuzio.
Giovanni Mazenta, porém, pertencente a uma antiga e ilustre família milanesa, ficou sabendo desse “trafico” e agiu em modo a obrigar Gavardi a devolver o material roubado à família Melzi que, surpreendida com a honestidade de Mazenta e ainda sem se dar conta do valor do tesouro que tinha em mãos, na figura de Orazio Melzi, decide presenteá-lo com os 13 volumes então restituídos, bem como convida-lo a retirar outros desenhos de Leonardo guardados em Vaprio d’Adda.
Divulgada a notícia da indiferença dos Melzi pelos manuscritos vincinianos, começaram a bater às portas da mansão pessoas de todo tipo, na esperança de terem a mesma sorte de Mazenta. Entre essas pessoas, destaca-se Pompeo Leoni, filho de Leone Leoni, escultor predileto de Felipe II, rei da Espanha.

Percebendo que os manuscritos não seguiam uma ordem particular desejada por Leonardo, Leoni inicia na década de 1580 um trabalho de desmembramento de todas as suas páginas, cortando e mudando sua ordem, de maneira a obter volumes de maior expressão. Também tinha a intenção de separar os desenhos puramente artísticos daqueles de cunho tecnológico e científico. Desse trabalho resulta o Código Windsor, formado por 600 desenhos montados em 234 folhas e, atualmente, conservado na Biblioteca Real de Londres, bem como o Código Atlântico, custodiado na Biblioteca Ambrosiana, considerada a biblioteca cívica de Milão, sua instituição cultural por excelência.
De certa forma, o trabalho de desmembramento dos cadernos vincinianos também teve o objetivo melhor conserva-los e facilitar seu manuseio. De fato, Leonardo não usou papel de tamanho padronizado, mas realizou suas anotações em folhas de tamanhos variados, às vezes irregulares, em alguns casos escritas somente na frente, em outros também no verso, o que dificultava um pouco seu manuseio. Então, Pompeo Leoni decidiu colar as folhas de Leonardo de vários tamanhos em folhas de um único formato, aliás, o maior formato possível, cortando janelas para os casos de manuscritos com anotações na frente e no verso, criando uma espécie de passe-partout. Dessa forma, ao lê-las, o leitor não tinha mais que tocar os originais, mas apenas as folhas de suporte.
A folha de maior tamanho no século XVII era a de formato atlântico, ou seja, a que era usada para imprimir e confeccionar os chamados atlas, razão pela qual o mais completo código vinciniano tem o nome de Atlântico.
Com a morte de Pompeo Leoni, o Código Atlântico é herdado, em 1610, por Polidoro Calchi (marido de Vitória, filha de Leoni), que o vende pela soma de 300 escudos ao Conde Galeazzo Arconati, com o qual permanece, em sua mansão de Castellazzo di Bollate (nos arredores de Milão), até 21 de janeiro de 1637, quando é doado à Biblioteca Ambrosiana, juntamente com o Código do Vôo, conforme especificado no documento de doação assinado por Arconati.
O fato dos Códigos Atlântico e do Vôo terem entrado para a Biblioteca Ambrosiana após um século conturbado, no qual passaram de mão em mão, de um mercador de arte a outro, não significa um ponto final em suas peripécias, que prosseguirão na era napoleônica.
Quando Napoleão entrou em Milão, em 15 de maio de 1796, sabia exatamente quais eram os tesouros que deveriam ser transferidos a Paris para que, como dizia ele, pudessem ser tutelados. Na realidade, tratava-se da requisição de um verdadeiro espólio de guerra. Tanto é que, 9 dias antes da sua chegada a Milão, apresentou-se às portas da Biblioteca Ambrosiana Jacques Tinet, que poderia ser chamado de Ministro da Cultura francês, acompanhado do comissário de guerra Peignon, com uma lista bem precisa de obras que deveriam ser transportadas a Paris. Menos de uma semana depois, deixavam a Biblioteca Ambrosiana as caixas contendo as várias obras tomadas pelo governo de Bonaparte, as quais chegaram a Paris somente em 25 de novembro. Durante esse longo percurso foi definido o destino dessas várias caixas. Por exemplo, a caixa de no. 19, identificada como “Carton des ouvrages de Léonard de Vinci” (Papéis com obras de Leonardo da Vinci), foi destinada à Biblioteca Nacional de Paris, enquanto que outra caixa contendo “Douze petits manuscrits de Leonard de Vinci” (Doze pequenos manuscritos de Leonardo da Vinci, entre os quais, o Código do Vôo e os Manuscritos A a M) foi destinada ao Instituto da França. Essa separação foi a causa da incompleta restituição dessa obras à Biblioteca Ambrosiana ao término do domínio de Napoleão, em 1815.
Terminada a era Bonaparte, dirigiram-se a Paris os plenipotenciários das várias nações européias que, entre outras coisas, tinham a função de identificar e repatriar as obras de arte tomadas de seus respectivos países como espólio de guerra. A esse ponto, ocorre um episódio curioso e, de certa forma, cômico: Milão, após a fase napoleônica, voltou ao domínio austríaco e, portanto, a autoridade legítima encarregada de mandar um plenipotenciário para recuperar os bens artísticos tomados de Milão era a casa de Habsburgo. Esse plenipotenciário, chamado Ottenfels, era um barão, provavelmente aposentado depois de ter participado de campanhas militares e, sem dúvida, uma pessoa que não se interessava por arte. Ottenfels, ao ver os escritos de Leonardo e não conseguindo ler sua famosa grafia inversa (talvez, mesmo o idioma italiano já não lesse muito bem), tomou esses textos por relíquias chinesas e disse: "Sem dúvida, não nos pertence; é do Extremo Oriente".
Por sorte, estavam presentes nessa ocasião os plenipotenciários do Papa e, entre eles, o famoso escultor e chefe da delegação papal, Antonio Canova, ou seja, alguém que entendia (e muito) de arte e sabia bem que aquilo não era uma coletânea de escritos chineses, mas era o famoso Código Atlântico de Leonardo e conseguiu convencer o aposentado barão austríaco a levar para Milão o que é o tesouro mais importante da Biblioteca Ambrosiana. Levou consigo também cópias, tomadas como verdadeiras, de 3 dos 12 pequenos volumes que se encontravam no Instituto da França, tendo assinado um recibo no qual se comunicava que todos os manuscritos vincinianos levados da Biblioteca Ambrosiana haviam sido recuperado, com exceção de 9 pequenos manuscritos, que não haviam sido encontrados na Biblioteca Real de Paris.
As peripécias do Código Atlântico não terminaram com a época napoleônica. Tiveram um breve, mas doloroso, apêndice no século passado, em 1968, quando um funcionário da Biblioteca Ambrosiana, Anselmo Mancaello, roubou uma folha dupla do Código Atlântico para tentar vendê-la no mercado de antiguidades. Obviamente, não obteve sucesso, pois a obra era muito conhecida e terminou por devolvê-la em 13 de novembro desse mesmo ano.
Após esse episódio, teve início um processo de restauração de todo o Código, que ocorreu entre 1968 e 1972 e incluiu a substituição de todas as folhas de suporte e sua encadernação em doze livros. Isso , naturalmente, permitiu tutelar com maior cuidado essa obra, porque claramente as folhas não podem mais ser removidas, já que estão encadernadas em volumes.
O restauro não se consistiu somente da encadernação das folhas de Leonardo, mas também da substituição do passe-partout de Pompeo Leoni, ou seja, das folhas de suporte que, atualmente, são todas novas, feitas com um papel especial, de acidez específica e tendo um cuidado especial no ponto de contato entre a folha de Leonardo e a folha de suporte, de modo a poder tutelar do melhor modo possível os manuscritos.
Uma questão de relevância que se deve colocar é: teria Pompeo Leoni usado algum critério quando montou as folhas do Código Atlântico e quando as ordenou na seqüência que ficou sendo a tradicional e que ainda hoje é a encontrada nos doze volumes do atual Código Atlântico?
A resposta quase certa é não. Talvez tenha tentado fazer isso ao separar os desenhos artísticos dos científicos, mas, ou por falta de tempo, ou por mudança de estratégia, não completou essa empreitada. O fato é que não há uma seqüência lógica. Há, na realidade, uma desordem que, no final das contas, é o que torna o Código Atlântico tão espetacular, pois a cada virada de página descortinam-se um novo tema, um novo projeto, nos mais variados campos pelos quais Leonardo transitou: óptica, arquitetura, geometria, arte e, sobretudo, mecânica e hidráulica. São encontrados no Código Atlântico, por exemplo, os estudos para a construção dos chamados Navilhos de Milão, bem como uma grande quantidade projetos de máquinas bélicas, porque, em Milão, Leonardo era patrocinado pelo Duque Ludovico - O Mouro, que não o queria somente para produzir obras de arte, mas, sobretudo, para desenvolver máquinas bélicas, armas sempre mais potentes, para as suas guerras de conquista e de defesa do Ducado.
Todas as páginas do Código Atlântico são fascinantes, mas com fascínios diferentes. Há o fascínio da página monotemática, onde em uma página inteira é dedicada ao projeto de uma obra, de uma máquina ou de uma construção, sendo possível, portanto, estudar seu conteúdo nos mínimos detalhes. Em algumas dessas páginas monotemáticas, por exemplo, Leonardo realiza o desenho integral de um mecanismo e, depois, o desenho decomposto. Por exemplo, as várias engrenagens decompostas de um mecanismo, desenhadas ao lado do mecanismo montado. Há também o fascínio das páginas realmente caleidoscópicas, onde se vê um pouco de tudo, como por exemplo, suas anotações pessoais ao lado do esboço da imagem de uma Nossa Senhora, ao lado do esboço de uma planta do Castelo Sforzesco, ao lado de um pequeno homem que caminha sobre as águas em patins que deveriam flutuar, ou um homem com as asas e seu projeto do vôo.
Atualmente, o Código Atlântico é conservado na sala dos Tesouros da Biblioteca Ambrosiana de Milão, de onde praticamente não sai.
A Biblioteca Ambrosiana, localizada a poucos passos da famosa catedral gótica de Milão, é uma das mais importantes instituições culturais do mundo, com uma coleção de mais de 450 mil livros impressos, 15 mil manuscritos originais, 3 mil incunábulos (livros impressos nos primeiros tempos da imprensa), mais de 12 desenhos e outros tantos pergaminhos, além de mais de 1500 óleos sobre tela, madeira e cobre. Além do famoso Código Atlântico, habitam a Biblioteca Ambrosiana outras obras de Leonardo: 27 desenhos, 4 incisões com os chamados “nós vincinianos”, o fascinante livro de Luca Pacioli intitulado “A Divina Proporção”, contendo ilustrações de Leonardo (entre as quais a do famoso Homem Vitruviano) e o óleo sobre madeira com o retrato do músico, provavelmente pintado em 1485.
Muito se falou até agora sobre o Código Atlântico, mas e o Código do Vôo? O que tem ele de tão especial, para ser colocado no mesmo nível de importância do Atlântico, embora tenha apenas 18 folhas, contra 1119 do Código Atlântico?
Bem, o Código do Vôo é fascinante pelo fato de certamente ter sido usado como caderno de anotações de Leonardo, onde ele escreveu e desenhou em vários períodos; inicialmente fez desenhos, entre os quais desenhos de folhas e desenhos de perspectivas anatômicas. Depois disso, escreveu com sua grafia nervosa e difícil de ler, incompreensível para muitos, falando de um tema muito instigante que é o vôo dos pássaros. Assunto tão instigante que ele mesmo intitula o caderno como "Pássaros e outras coisas" e não faz referência a outros temas. Dentro desse tema, Leonardo estuda a anatomia dos pássaros e seu comportamento durante o vôo, a ponto de desenvolver um pássaro mecânico que lhe servisse de modelo para seus estudos, bem como uma máquina capaz de fazer o homem voar, a qual pode ser considerada um irmão mais velho dos modernos planadores, ou dos concordes.
Quando entrou no Instituto da França, levado pelos representantes de Napoleão, o Código do Vôo possuía algumas folhas a mais, folhas que hoje compõem o chamado Manuscrito B, no qual se encontram anotados numerosos estudos sobre o vôo, bem como propostos diversos mecanismos de máquinas voadoras, entre as quais a mais célebre de todas, ou seja, o parafuso voador, precursor do moderno helicóptero. A separação do Código do Vôo em duas partes ocorre entre 1841 e 1844, quando lhe cruza o caminho Guiherme Libri, definido por todos como um dos mais temíveis acidentes da história dos Códigos Da Vinci.
Libri, conhecido por ser um exímio matemático, foi também um antiquário de renome e que, infelizmente, furtou importantes peças de diversas bibliotecas, revendendo-as no mercado de arte. Dessa forma, com Guilherme Libri o Código do Vôo deixa o Instituto da França, juntamente com outros importantes documentos, entre os quais algumas páginas dos manuscritos A e B.
Em 1892, as folhas do código do Vôo pertencentes aos herdeiros de Manzoni passaram às mãos de Theodore Sabachnikoff, personagem incrível, pertencente a uma família russa de grande importância empresarial, mas também de importantes qualidades culturais e intelectuais, a ponto de ter criado uma das salas culturais mais renomadas da época em sua região (Sibéria), onde se reuniam normalmente intelectuais, mas também dissidentes e exilados políticos e por onde se formou parte da intelectualidade daquele período.
Sabachnikoff era fascinado pelo Humanismo e pelo Renascimento e, em particular, pela personalidade de Leonardo da Vinci, o que o fez passar grande parte da sua vida tentando reunir tudo o que existia pelo mundo sobre Leonardo, adquirindo muitas obras no mercado de antiguidades. Nessa sua busca, encontrou Piumati, no qual apreciava o fato de ser a única pessoa capaz de, no séc. XIX, ler a grafia invertida de Leonardo. Com Piumati, encontrou este famoso Código, o qual comprou com o objetivo de editar um fac-símile. Sabendo desse projeto, Murray cede a Sabachnikoff uma das 5 folhas de sua propriedade, a de no. 18, ignorando que as demais também fizessem parte do Código.
O fac-símile, editado pela cada Hoepli, conta com um belo prefácio de Sabachnikoff, que contém um dos mais belos retratos de Leonardo: "Leonardo da Vinci, homem universal e perfeito do Renascimento Italiano, anatomista, químico, botânico, geólogo, geógrafo, engenheiro, nós o vemos na matemática e nas ciências indutivas, precursor de Galileu e de Bacone. Artista, revela-se poeta, músico, destaca-se com primazia na escultura e na arquitetura. Com o tempo, sua figura não pára de engrandecer-se".
Terminado o trabalho de edição, Sabachnikoff decide doar suas 14 folhas do Código do Vôo ao Rei da Itália, Humberto I, que as deposita na Biblioteca Real de Turim, a qual já possuía grande quantidade de desenhos de Leonardo e por ele considerada a única biblioteca em condições de preservar esse precioso patrimônio.
Dez anos mais tarde, em 1903, a folha 17 une-se às demais em Turim. As demais faltantes (1, 2 e 10) foram cedidas ao colecionador Enrico Fatio, de Genebra, o qual as doa ao Rei Vitor Emanuel III alguns anos depois.
Termina, assim, a aventura do Código do Vôo que, em possesso de todas as suas páginas (à exceção das que compõem o Manuscrito B, ainda custodiado no Instituto da França), é hoje definitivamente conservado na Biblioteca Real de Turim.
A Biblioteca Real de Turim, única no mundo por sua preciosíssima coletânea de manuscritos, desenhos e incisões, além de volumes impressos e coleções fotográficas, tem sua origem no firme desejo de Carlos Alberto, Rei da Sardenha (que também incluía o Piemonte, cuja capital é Turim), de criar sua "wunderkammer", ou seja, um gabinete das maravilhas para onde pudesse transferir parte das suas coleções espalhadas por seus diversos castelos, mas, sobretudo, onde pudesse guardar suas aquisições feitas no mercado de antiguidades em termos de objetos e livros que tivessem pertencido ou, conforme constava em inventários, estivessem ligados à Casa Savóia e que se perderam por vários motivos, ou terminaram queimados nos incêndios que devastaram a Galeria Ducal no final da segunda metade do Século XVII, provocando graves danos inclusive à coleção de livros acumulada pelos Savóia nos séculos precedentes.
A vontade de Carlos Alberto foi a de criar uma biblioteca feita sob medida, que servisse para ele, para seu prazer, mas que também servisse para os seus dignitários e que, portanto, tivesse também uma função pública; daí surgiu a idéia de transferi-la à seção que atualmente ocupa do Palácio Real, confiando a realização dessa obra a Pelagio Palagi, que era o arquiteto da corte.
Depois, graças ao auxílio dos valorosos bibliotecários que mantinham a Biblioteca Real, foram adquiridas várias outras obras de arte, entre as quais, em 1839, uma preciosa coletânea de 2.000 desenhos italianos e estrangeiros, adquirida de um antiquário importante do local, Volpato, entre os quais se encontravam desenhos de Leonardo (incluso o famoso auto-retrato), mas também de Rafael, de Michelangelo Buonarroti e outros.
Atualmente, a Biblioteca conserva cerca de 200 mil volumes, 4.500 manuscritos, 3.000 desenhos, 190 incunábulos, 5.000 publicações do século XVI, 1.500 pergaminhos, revistas, álbuns fotográficos, cartas geográficas, incisões e impressões.
REFLEXÕES SOBRE O ORGULHO
Não me lembro onde li que o orgulho é o pior dos defeitos por estar na origem de todos os demais. O fato é que passou muito tempo até que começasse a amadurecer esse conceito em minha cabeça.
Orgulho é sinônimo de amor-próprio exagerado, que provoca, ou é o resultado, de um desequilíbrio emocional invariavelmente associado à arrogância, à altivez e à insolência.
É o orgulho, portanto, que nos faz ter um conceito excessivamente elevado de nós mesmos, que nos provoca um desejo imoderado de chamar a atenção, ou de receber elogios (vaidade), mas que por outro lado também pode despertar nossa cobiça em vista da superioridade ou felicidade de outrem (inveja) e que, nos limites da loucura, pode se transformar em ira incontida, ou rancor violento e duradouro que se deseja ao próximo (ódio).
Tanta altivez termina por distorcer nossa visão a ponto de fazer com que nos preocupemos exclusivamente conosco mesmos (egoísmo). Também bloqueia a razão, fazendo-nos pouco propensos a compreender e a tornarmo-nos compreendidos (incompreensão).
Ora, quem nessas condições não se torna incapaz de suportar algo ou alguém (impaciência), disposto a desrespeitar a opinião alheia (intolerância), a atacar (agressividade) e a retalhar até mesmo premeditadamente (vingança)?
E mesmo os tímidos, melancólicos, trancados em seus mundos, vítimas de si mesmo e de seus antagônicos, os extrovertidos, nada mais são do que pessoas orgulhosas, com medo de se expor e de não serem aceitos, com ódio de si mesmos e da vida que levam, prontos a explodirem, sem o menor remorso.
E como nos livrarmos desse mal pela raiz? A resposta encabeça o primeiro dos mandamentos: Amar a Deus sobre todas as coisas. E para amar a Deus incondicionalmente, do fundo da nossa alma, antes de tudo devemos amar a nós mesmos, mas também ao próximo, igualmente filho de Deus e, portanto, nosso irmão.
Fácil? Nem um pouco e nem tampouco rápido. A aceitação de nós mesmos é um processo lento e, por isso mesmo, requer diversas vidas, nas quais experimentamos essas várias faces do orgulho, de maneira a, paulatinamente, deixarmo-lo de lado, transformando-lo em sensatez, brandura, humildade, amor.
O processo é lento, longo, mas com fim inevitável, que é o de fazer com que retornemos à casa do Pai. Todavia, se não for iniciado, esse percurso nunca será cumprido e o momento mais propício para que essa reforma interior seja realizada é agora. Façamos um grande esforço, portanto, para aceitar nossas fraquezas, valorizar nossas virtudes (mas sem exageros) e estimular nossos irmãos, com nossos pequenos progressos, para que também evoluam.
sexta-feira, 29 de julho de 2011
SÃO PAULO VISTA DO ALTO DE SEUS TERRAÇOS
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A vila eclodiu, desenvolveu-se, cresceu e as graciosas palmeiras, onde cantavam os sabiás que encantavam os poetas românticos de décadas atrás, deram lugar a construções ora sisudas, ora fascinantes, às vezes irreverentes, mas que em quaisquer casos levam-nos a querer saber como, em pouco mais de cem anos, um povoado esquecido no meio do nada se tornou uma das maiores metrópoles mundiais.
De fato, até 1870 São Paulo contava com pouco mais de trinta mil habitantes, número que pulou para um milhão, por volta de 1920, e para mais de onze milhões nos dias atuais. De onde veio tanta gente, ou o que talvez seja mais apropriado perguntar, o que atraiu a atenção de tanta gente para cá? E a resposta a essa pergunta está muito mais próxima do cotidiano de todos nós do que possamos imaginar: um cafezinho.
Sim, um simples cafezinho, que quase todos degustamos puro ou com leite, alongado ou curto, logo pela manhã, ao acordar, ou depois do almoço, para não deixar o sono nos levar. Uma bebida simples, que nem mesmo é nativa do Brasil, mas que na terra avermelhada de São Paulo, chamada “rossa” pelos imigrantes italianos, de onde nasce o termo “terra roxa” dado pelos paulistas, proliferou e tornou-se uma das maiores riquezas deste país.
Pois é, o café paulista ganhou o mundo (até 1929, 75% do café comercializado no mundo era produzido em São Paulo) e acabou enriquecendo muita gente, uma elite de fazendeiros que o tempo se encarregou de chamar de barões, os quais, como todos os endinheirados, passaram a ter necessidades que a vidinha provinciana de São Paulo não era capaz de satisfazer. Para aquietar essa demanda latente, primeiro um comércio e depois uma pequena indústria começaram a se desenvolver e cresceram impulsionados particularmente pela Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, construída para ajudar a escoar a produção de café e que propiciou a vinda para a capital, estrategicamente colocada no meio do caminho entre o porto e as plantações, de produtos de primeira linha, trazidos da Europa como lastros dos navios que tinham a incumbência de levar para o exterior a valiosa bebida brasileira.
Mas de onde veio a mão de obra necessária para dar vida a esse comércio e indústria, já que a coletividade mameluca local não tinha experiência nesse tipo de atividade? Bem, é aí que começa a saga de muitas famílias de imigrantes, em mais de 50% dos casos italianas, que de
Tanta gente assim, além de trabalhar e influenciar a cultura local com seus sabores, odores, hábitos e sotaques, também precisava viver, morar, ter um lugar onde transcorrer as horas de folga com suas famílias. Para resolver essa questão, os próprios fazendeiros apresentaram uma solução, qual seja, construir casas de aluguel que começaram a transfigurar a geografia de São Paulo e garantir a manutenção das fortunas de seus proprietários, já que os imóveis de aluguel propiciavam ganhos maiores do que as aplicações bancárias.
Essas construções de aluguel, bem como as novas e confortáveis residências dos abastados cafeicultores, decoradas com o requinte que o título de barão merecia, marcam uma drástica mudança na arquitetura local até então baseada na taipa de pilão. Com os imigrantes vieram as técnicas de produção de tijolos, que por sua vez permitiam a edificação de construções maiores, mais altas e mais robustas. Os imigrantes também trouxeram para cá suas técnicas de decoração e pintura, que passaram a ser largamente empregadas por escritórios de arquitetura e construção que fizeram a fama no início do século XX, como é o caso de Ramos de Azevedo, responsável pela construção de grande parte dos inúmeros palacetes que passaram a fazer parte da paisagem paulista, bem como diversos edifícios públicos.
A arraigada cidade cresceu e nos diversos bairros que se formaram em volta do centro fundado pelos jesuítas, o que se percebia era um ar de cidade européia, com belas construções em meio à rica vegetação e envoltas pela bruma da manhã que alguns chamavam de garoa e que hoje foi substituída pelas nuvens de poluição.
Mas as transformações na paisagem urbana de São Paulo não pararam por aí e a visão bucólica de uma abastada capital européia aos poucos foi dando lugar ao caos em que atualmente vivemos, com o advento dos automóveis e os inerentes congestionamentos, cujo primeiro registro de que se tem notícia data de 1911, por ocasião da inauguração do Teatro Municipal: 140 automóveis e 150 carruagens se emaranharam nos arredores do Teatro, fazendo com que muitos chegassem com notável atraso ao espetáculo inaugural!
O surgimento do automóvel impulsionou a mudança no traçado de algumas ruas, o alinhamento de quarteirões e sua conseqüente reconstrução, mas foi o concreto armado que transformou essa cidade num pulular de torres de Babel, ensandecidas para atingir o céu, das quais uma das primeiras foi o simpático Edifício Sampaio Moreira, uma jóia da arquitetura Luis XVI e que ainda pode ser visto pelos transeuntes da rua Líbero Badaró, embora com o lustro de seus tempos áureos completamente apagado.
Mas se foi com os dez andares do Sampaio Moreira que São Paulo começou seu crescimento vertical, foi com o Edifício Martinelli que a cidade dos jesuítas marcou seu ingresso no mundo das grandes metrópoles. Imponente no cruzamento da Avenida São João com a Rua Líbero Badaró e a Rua São Bento, ele foi o primeiro arranha-céu da América Latina. Do alto do seu terraço, localizado no 25° andar, era então possível admirar de maneira majestosa a cidade em frenética transformação: novas avenidas, construídas para dar vazão ao fluxo de veículos, inúmeras pontes que cruzavam os rios levando a bairros recém-criados, de modo a acomodar o extraordinário incremento populacional, a construção de residências elegantes em estilo neo-clássico na Santa Cecília, em Higienópolis ou na Avenida Paulista, edifícios comerciais, hotéis, mercados, teatros, escolas e tudo mais que uma cidade precisava ter para entrar para a história como uma das maiores do mundo.
A visão que se tinha, do topo do Martinelli, do vale do Anhangabaú, tão francês quanto a Avenida Champs Elisée de Paris, era de dar inveja a Gustave Eiffel, sobretudo porque, a partir da torre construída pelo engenheiro francês, via-se apenas uma bela cidade, mas não uma serra verdejante coroando o planalto sobre o qual São Paulo foi construída.
Fecho os olhos e consigo me imaginar caminhando por aquele terraço revestido por um singular ladrilho hidráulico, tão em moda na época, e, protegido por uma bela balaustrada, aproximo-me do beiral em direção à Serra do Mar e quase consigo ouvir o barulho da arrebentação das ondas e o sopro de ar gélido vindo do Oceano Atlântico.
Mas não é possível falar do Edifício Martinelli sem falar sobre seu idealizador, um entre tantos italianos de fibra que deixaram sua terra para fazer fortuna nas Américas. Giuseppe Martinelli, que pelos seus feitos assumiria mais tarde o título de comendador, nasceu no ano de 1870 na cidade de Lucca, onde viveu até completar 19 anos. Tinha o desejo de estudar arquitetura, mas suas condições financeiras não lhe permitiram concretizar tal sonho. Partiu então para o Brasil, país que, ontem, como hoje, atraía a atenção do mundo pelo seu insólito crescimento econômico, onde trabalhou como açougueiro e mascate, antes de montar uma importadora, que foi a origem de uma das maiores companhias de transporte marítimo da época. Em cerca de 30 anos de trabalho, sua companhia de navegação possuía uma frota de 22 navios e ele havia conseguido amealhar uma considerável fortuna. Dinheiro, porém, não lhe bastava. Queria deixar para a história um marco, um tributo a São Paulo por tudo aquilo que lhe havia proporcionado e, imbuído de seu espírito empreendedor, decidiu construir no ponto mais nobre da capital paulista o que foi, por diversos anos, o maior edifício da América Latina.

Mais de 600 operários e 90 artífices italianos e espanhóis trabalharam na construção do Martinelli que, para ser erguido, usou cimento importado da Noruega e Suécia pela importadora do comendador. Todo o material de acabamento (lustres, mármores, espelhos, vidros, estuques, elevadores, louças, portas, ferragens e papéis de parede) também foi importado, já que entre 1924 e 1929, período em que o gigante se ergueu, o Brasil ainda não produzia os materiais necessários para dar vida a essa suntuosa obra que teve origem no projeto de um arquiteto húngaro, mas que ao longo das adaptações que a levaram ao céu, teve o comando nas mãos do próprio Comendador Martinelli.
O prédio era um luxo só: granito vermelho no embasamento, falsa mansarda de ardósia no coroamento e corpo central revestido por uma massa rósea composta por vidro moído, cristais de rocha e mica, que o faziam brilhar durante a noite. Tudo isso para fazer com que seus nobres inquilinos, como jornais, clubes (entre eles o Palestra Itália), restaurantes, um hotel, um cinema e a famosa escola de dança do Professor Patrizi, sentissem-se no melhor dos ambientes.
Quem passa pelo Martinelli hoje tem dificuldade em identificá-lo com o Empire State da América do Sul, um lugar por onde passaram autoridades das mais renomadas em nível internacional, como o Prêmio Nobel e inventor do rádio Gugliemo Marconi. Também é difícil imaginar que foi ao seu redor que o Dirigível Graf Zeppelin deu uma volta ao passar por São Paulo, fazendo-o definitivamente entrar para a história, bem como pode ser difícil acreditar que em suas enormes fachadas foram afixados os primeiros out-doores do país (fazendo propaganda de produtos importados pelo comendador, é claro!).
Com a guerra, e a Itália em posição divergente do Brasil, o Martinelli, então de propriedade do Governo Italiano, foi desapropriado em 1943 pelo Governo Brasileiro e daí para frente entrou iniciou um processo de decadência interrompido somente em 1979, quando a prefeitura de São Paulo resolveu adquiri-lo, restaurá-lo e lá instalar alguns de seus escritórios. Nesse meio tempo e com o início da produção de aço no Brasil, matéria-prima necessária para a fabricação do concreto armado, os arranha-céus multiplicaram-se e o Martinelli acabou se tornando vítima da moda por ele mesmo criada, tendo, em 1947, perdido o título de edifício mais alto o Brasil para o Altino Arantes, construído a apenas alguns passos dele.
Hoje em dia, de seu terraço já não é mais possível admirar a bela paisagem do vale do Anhangabaú, adornado pelos pavilhões gêmeos do Conde Prates, os palacetes de Santa Cecília, ou a Serra do Mar. Vêem-se, ao contrário, os telhados de prédios menores e paredões de vidro e concreto construídos por toda parte como que a lhe gritar que sua época já passou. Os transeuntes da região também já não são mais ricas senhoras a caminho das compras na formosa Rua Direita, ou políticos e executivos apressados para o trabalho.
A obra tinha que ser imponente, de forma a representar a ascensão social e econômica dos italianos em terras paulistanas, após um difícil início, muito semelhante ao de todos os imigrantes, e que culminou com a transformação desta cidade, deste estado e deste país numa terra não só de promessas, mas de realizações.
Segundo noticia da época, o surgimento do Itália fez com que o perfil urbano de São Paulo fosse alterado de maneira marcante. É como se ele resgatasse para os italianos o passado de glórias do Martinelli, um resgate que até hoje não foi suplantado, já que o Edifício Itália continua a oferecer, depois de 45 anos, a vista mais deslumbrante de uma cidade que não pára de crescer.
E o panorama que se descortina do alto desse tributo deixado pela comunidade italiana a São Paulo aos cidadãos do mundo que queiram surpreender-se com as dimensões da maior cidade sul-americana tornou-se possível também graças à vontade de Evaristo Comolatti, outro italiano de fibra que fez sucesso no setor de peças para caminhões e que ao visitar o terraço do Edifício Itália resolveu construir ali um dos mais charmosos restaurantes italianos do país, permitindo, assim, que São Paulo fosse vista do alto da maneira mais agradável possível. Um espaço projetado por ninguém menos que Paulo Mendes da Rocha e Burle Marx, e que já foi visitado por Elisabeth II da Inglaterra, Indira Gandhi da Índia, Édson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, e inúmeras outras personalidades políticas e do show biz internacional.
Famosos e anônimos, paulistanos ou forasteiros, vidas que se entrecruzam, conforme disse Comolatti, para admirar a partir do Terraço Itália Restaurante o coração e o centro motor da atividade industrial desta borbulhenta terra.
Uma cidade orgânica, como bem colocado por Massimiliano Fuksas, grande arquiteto italiano que, em suas passagens por São Paulo, não consegue deixar de admirar a vida que exala. E um observador atento chega às mesmas conclusões ao observar São Paulo à noite, tomando uma boa taça de vinho, sozinho ou acompanhado, do alto do Terraço Itália: o fluxo de veículos lembra a circulação sanguínea, o acender a pagar de luzes no interior dos edifícios vizinhos faz lembrar um gigante ofegante, cujo sopro se traduz na suave brisa noturna. Quem serão essas pessoas, o que fazem, o que pensam, por quais problemas e vitórias passam?
Ah, São Paulo! A maior cidade japonesa fora do Japão, a maior cidade libanesa, fora do Líbano, a maior cidade portuguesa fora de Portugal e, naturalmente a maior cidade italiana fora da Itália. Metrópole com uma das maiores populações do mundo, com uma das maiores frotas de automóveis e com a maior frota de helicópteros. Local onde mais são vendidas Ferraris, única no mundo a possuir mais que uma loja Bulgari, Tiffany, Cartier... Mal sabia Dom Pedro, às margens do riacho Ipiranga, que aquele momento era apenas a primeiro de tantas grandezas que enobreceriam essa cidade, que não tem o Cristo no alto de um morro, mas que do alto de seus edifícios recebe a todos de braços abertos.
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