domingo, 7 de agosto de 2011

O MELHOR DA MINHA VIDA FOI TER PODIDO AJUDAR OS DEMAIS

Meu primeiro encontro com Rita Levi-Montalcini foi, por assim dizer, dos mais impessoais. Aconteceu há pouco mais de 2 anos, talvez 3, em meu escritório, quando trabalhava num projeto de promoção do Made in Italy aqui no Brasil. Naquela ocasião, procurava todo tipo de texto que, de alguma forma, me ajudasse a provar que a Itália é um grande pólo desenvolvedor de talentos, tecnologias, design e arte. Foi então que recebi uma cópia da agenda editada pela Embaixada da Itália para o ano seguinte e que dedicava cada mês do calendário a uma personalidade italiana diferente.

Entre textos e fotos de pessoas cujos feitos gravaram seus nomes na história, como Alessandro Volta, Enrico Fermi e Galileo Galilei, lá estava ela, meio tímida, numa foto em que pousava delicadamente sua mão direita sobre um globo terrestre e com a esquerda o segurava, como se o quisesse proteger. Mas o que mais me chamou atenção nessa figura vestida de preto, já de certa idade e com o rosto sulcado por marcas do tempo, foi sua semelhança com minha avó paterna, com a qual fui, e de certa forma ainda sou, apesar de ter sido privado há muito tempo da convivência quase que diária, extremamente ligado.

Desprendendo por um momento o olhar daquela foto, que me despertou ternas lembranças e muitas saudades, comecei a ler o texto, que falava um pouco sobre a vida dessa senhora. Muito sucinta, a biografia dizia que Rita Levi-Montalcini, nascida em Turim em 22 de abril de 1909, havia se formado em medicina e que havia sido condecorada com o Prêmio Nobel de Medicina, em 1986, pela descoberta, aliás, sob condições bastante adversas, do NGF, sigla em inglês para Nerve Grouth Factor, ou fator de crescimento dos nervos, uma proteína que favorece o crescimento das células do sistema nervoso e que, segundo estudos recentes, está intimamente ligada às doenças degenerativas do cérebro, como o mal de Alzheimer e a doença de Parkinson.

Bem, tendo nascido em 1909, teria então perto de 100 anos se estivesse ainda viva e, para minha surpresa, estava. Há poucos meses desse nosso encontro, completaria um século de vida, comemorada com toda pomba e circunstância em toda a Itália. Noticiários, especiais e entrevistas em importantes programas de televisão não deixaram de marcar a data, o que, para mim, foi de grande importância para levantar informações sobre essa figura fascinante.
Conforme mais ficava íntimo dela, maior era a vontade de conhecê-la pessoalmente. Seria como conhecer uma grande personalidade, que havia vivido as maiores transformações e fatos da nossa recente história, e reencontrar minha avó, cuja lembrança suas feições insistiam em me recordar.

No meio dessa pesquisa instigante, descobri que Rita Levi-Montalcini, havia nascido numa bem estruturada família de origem hebréia, filha de um engenheiro e de uma proeminente artista plástica. Entre seus irmãos estão Gino, um dos mais famosos arquitetos italianos, e Paola, irmã gêmea, insigne pintora. A infância foi tranqüila, cercada de amor, embora de acordo com as rígidas normas de uma família vitoriana, como faz questão de sublinhar.

Conta ela numa das várias entrevistas realizadas por ocasião de seus 100 anos de nascimento que, com 5 anos de idade, havia visto um chapéu adornado com flores e cerejas que pediu para seus pais comprarem. Entretanto, seu pai recusou-se a satisfazer seu desejo, considerando-o inadequado. Pensou ela, então, porque deveria um homem, com tantos afazeres e responsabilidades, ocupar-se até mesmo da escolha das vestimentas dos filhos. Foi aí que decidiu que, em idade ainda tão precoce, decidiu que jamais se casaria, pois não poderia viver sob o comando de alguém, como exigia a sociedade da época.

Passaram-se anos e, então, começou a tomar vida sua promessa. Pediu autorização para seu pai para que pudesse estudar medicina, curso no qual se formou às portas da eclosão da segunda guerra e durante a qual teve sua única experiência na profissão, já que foi como pesquisadora que deu vazão à sua vontade de aprender. Essa escolha tinha origem na admiração pelo médico Albert Schweistzer, que havia ido para a África combater a lepra. Desejava ajudar os que sofriam.
Quiseram os fascistas que ela, não descendente da raça ariana, interrompesse sua carreira. Isso, entretanto, não aconteceu. Aliás, foi num pequeno laboratório, montado dentro de seu quarto, que ela teve o primeiro contato com o NGF, cuja existência viria a provar tempos depois, numa longa permanência nos Estados Unidos, que inclui um ano de estudos, em 1952, no Instituto de Biofísica do Rio de Janeiro, onde teve a oportunidade de conhecer Carlos Chagas Filho, com o qual travou uma longa amizade, como relata uma matéria da revista Super-Interessante, em um de seus primeiros números.

O reconhecimento pela descoberta, realizada paralelamente e independentemente por outro cientista, Stanley Cohen, veio em 1986, pelas mãos do Rei da Suécia. Em entrevistas, conta que lia um livro de Agatha Christie quando lhe ligaram para anunciar que havia sido escolhida para receber o Prêmio Nobel de Medicina daquele ano, ao que havia respondido que estava muito honrada com a notícia.

Mas esse foi apenas um de tantos coroamentos de uma longa vida, que teria tudo para se encerrar publicamente pouco depois da ida a Estocolmo, quando já contava com 77 anos, se não fosse por sua vontade de ajudar a quem precisa. Aliás, uma das frases de Rita Montalcini que mais me marcaram diz exatamente que o objetivo da vida é aprender a desinteressar-se de nós mesmos e interessarmo-nos do mundo que nos circunda, é compreender o mundo e fazer o possível para ajudar quem precisa. E com essa retórica, fundou uma ONG com sua irmã Paola, em 1992, com o objetivo de levantar fundos para ajudar as mulheres da África. Escolheu ajudar as mulheres, pois são elas as grandes desfavorecidas das sociedades de sempre, não obstante nas sociedades ocidentais tenham sido verificados grandes avanços a favor do chamado sexo frágil. Já a África, foi seu foco desde o início da carreira, mas também por concentrar nos seus diversos países grandes desigualdades, que tendem a diminuir quando a família, base da sociedade, conta com uma base sólida, na qual a figura da mulher e também mãe tem papel crucial.

Hoje, aos 102 anos, diz que não sabe quando vai morrer e que nem mesmo esperava viver uma vida tão longa. Afirma que o que interessa é o que faz a cada dia. Trabalha para que as jovens africanas estudem, prosperem e ajudem seus países. Pesquisa. Pensa.

Não fala em se aposentar. Verifica que muitos se aposentam e matam seus cérebros, abandonam-se, adoecem. Seu corpo pode enrugar, o que é inevitável, mas seu cérebro continua pensando com quando tinha 20 anos. Não vê diferença! Afirma que ao manter o cérebro ativo, ele não degenera. Ainda que os neurônios morram, os que permanecem conseguem se reorganizar para compensar a perda. Entretanto convém estimulá-los, recomenda, mantendo a curiosidade, a vontade de aprender, o empenho e a paixão pelas coisas. Desse modo, podemos não viver mais, mas vivemos melhor.

Perguntada sobre o que faria se pudesse ter 20 anos novamente, respondeu sem pestanejar: Já estou fazendo!

Nunca tive ídolos e nem achava muito razoável adorar pessoas. Entretanto, após ler tanto sobre Rita Montalcini, que quando pequena se achava um patinho feio, inferior a seus irmãos e genitores, com destacado intelecto, não pude nutrir certa vontade de conhecê-la pessoalmente.

No ano passado, fui até a sede da sua ONG, na expectativa de eventualmente encontrar com ela no elevador, ou quem sabe ter a sorte de ser recebido por ela. Não quis o destino que esse acaso ocorresse. Entretanto, estive em sua sala de reuniões, sentei-me na mesma cadeira em que se sentou em uma das recentes entrevistas para a televisão italiana, passei os olhos por seus vários prêmios e condecorações, toquei em seus livros e conversei longamente com sua assessora de muitos anos, Giuseppina Tripodi, com a qual escreveu alguns livros e da qual tirei a promessa de me levar a uma breve conversa, que seja, com esse exemplo de pessoa. Quem sabe no próximo ano, disse eu, ao que ela respondeu, com olhar meio vazio e sem a certeza de poder cumprir sua promessa:  Certamente.

Recentemente fui convidado para participar de um seminário organizado pela ONG Rita Levi-Montalcini, que acontecerá no próximo dia 11 de outubro. Espero nessa ocasião conseguir finalmente conhecer Rita Levi-Montalcini.

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