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A vila eclodiu, desenvolveu-se, cresceu e as graciosas palmeiras, onde cantavam os sabiás que encantavam os poetas românticos de décadas atrás, deram lugar a construções ora sisudas, ora fascinantes, às vezes irreverentes, mas que em quaisquer casos levam-nos a querer saber como, em pouco mais de cem anos, um povoado esquecido no meio do nada se tornou uma das maiores metrópoles mundiais.
De fato, até 1870 São Paulo contava com pouco mais de trinta mil habitantes, número que pulou para um milhão, por volta de 1920, e para mais de onze milhões nos dias atuais. De onde veio tanta gente, ou o que talvez seja mais apropriado perguntar, o que atraiu a atenção de tanta gente para cá? E a resposta a essa pergunta está muito mais próxima do cotidiano de todos nós do que possamos imaginar: um cafezinho.
Sim, um simples cafezinho, que quase todos degustamos puro ou com leite, alongado ou curto, logo pela manhã, ao acordar, ou depois do almoço, para não deixar o sono nos levar. Uma bebida simples, que nem mesmo é nativa do Brasil, mas que na terra avermelhada de São Paulo, chamada “rossa” pelos imigrantes italianos, de onde nasce o termo “terra roxa” dado pelos paulistas, proliferou e tornou-se uma das maiores riquezas deste país.
Pois é, o café paulista ganhou o mundo (até 1929, 75% do café comercializado no mundo era produzido em São Paulo) e acabou enriquecendo muita gente, uma elite de fazendeiros que o tempo se encarregou de chamar de barões, os quais, como todos os endinheirados, passaram a ter necessidades que a vidinha provinciana de São Paulo não era capaz de satisfazer. Para aquietar essa demanda latente, primeiro um comércio e depois uma pequena indústria começaram a se desenvolver e cresceram impulsionados particularmente pela Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, construída para ajudar a escoar a produção de café e que propiciou a vinda para a capital, estrategicamente colocada no meio do caminho entre o porto e as plantações, de produtos de primeira linha, trazidos da Europa como lastros dos navios que tinham a incumbência de levar para o exterior a valiosa bebida brasileira.
Mas de onde veio a mão de obra necessária para dar vida a esse comércio e indústria, já que a coletividade mameluca local não tinha experiência nesse tipo de atividade? Bem, é aí que começa a saga de muitas famílias de imigrantes, em mais de 50% dos casos italianas, que de
Tanta gente assim, além de trabalhar e influenciar a cultura local com seus sabores, odores, hábitos e sotaques, também precisava viver, morar, ter um lugar onde transcorrer as horas de folga com suas famílias. Para resolver essa questão, os próprios fazendeiros apresentaram uma solução, qual seja, construir casas de aluguel que começaram a transfigurar a geografia de São Paulo e garantir a manutenção das fortunas de seus proprietários, já que os imóveis de aluguel propiciavam ganhos maiores do que as aplicações bancárias.
Essas construções de aluguel, bem como as novas e confortáveis residências dos abastados cafeicultores, decoradas com o requinte que o título de barão merecia, marcam uma drástica mudança na arquitetura local até então baseada na taipa de pilão. Com os imigrantes vieram as técnicas de produção de tijolos, que por sua vez permitiam a edificação de construções maiores, mais altas e mais robustas. Os imigrantes também trouxeram para cá suas técnicas de decoração e pintura, que passaram a ser largamente empregadas por escritórios de arquitetura e construção que fizeram a fama no início do século XX, como é o caso de Ramos de Azevedo, responsável pela construção de grande parte dos inúmeros palacetes que passaram a fazer parte da paisagem paulista, bem como diversos edifícios públicos.
A arraigada cidade cresceu e nos diversos bairros que se formaram em volta do centro fundado pelos jesuítas, o que se percebia era um ar de cidade européia, com belas construções em meio à rica vegetação e envoltas pela bruma da manhã que alguns chamavam de garoa e que hoje foi substituída pelas nuvens de poluição.
Mas as transformações na paisagem urbana de São Paulo não pararam por aí e a visão bucólica de uma abastada capital européia aos poucos foi dando lugar ao caos em que atualmente vivemos, com o advento dos automóveis e os inerentes congestionamentos, cujo primeiro registro de que se tem notícia data de 1911, por ocasião da inauguração do Teatro Municipal: 140 automóveis e 150 carruagens se emaranharam nos arredores do Teatro, fazendo com que muitos chegassem com notável atraso ao espetáculo inaugural!
O surgimento do automóvel impulsionou a mudança no traçado de algumas ruas, o alinhamento de quarteirões e sua conseqüente reconstrução, mas foi o concreto armado que transformou essa cidade num pulular de torres de Babel, ensandecidas para atingir o céu, das quais uma das primeiras foi o simpático Edifício Sampaio Moreira, uma jóia da arquitetura Luis XVI e que ainda pode ser visto pelos transeuntes da rua Líbero Badaró, embora com o lustro de seus tempos áureos completamente apagado.
Mas se foi com os dez andares do Sampaio Moreira que São Paulo começou seu crescimento vertical, foi com o Edifício Martinelli que a cidade dos jesuítas marcou seu ingresso no mundo das grandes metrópoles. Imponente no cruzamento da Avenida São João com a Rua Líbero Badaró e a Rua São Bento, ele foi o primeiro arranha-céu da América Latina. Do alto do seu terraço, localizado no 25° andar, era então possível admirar de maneira majestosa a cidade em frenética transformação: novas avenidas, construídas para dar vazão ao fluxo de veículos, inúmeras pontes que cruzavam os rios levando a bairros recém-criados, de modo a acomodar o extraordinário incremento populacional, a construção de residências elegantes em estilo neo-clássico na Santa Cecília, em Higienópolis ou na Avenida Paulista, edifícios comerciais, hotéis, mercados, teatros, escolas e tudo mais que uma cidade precisava ter para entrar para a história como uma das maiores do mundo.
A visão que se tinha, do topo do Martinelli, do vale do Anhangabaú, tão francês quanto a Avenida Champs Elisée de Paris, era de dar inveja a Gustave Eiffel, sobretudo porque, a partir da torre construída pelo engenheiro francês, via-se apenas uma bela cidade, mas não uma serra verdejante coroando o planalto sobre o qual São Paulo foi construída.
Fecho os olhos e consigo me imaginar caminhando por aquele terraço revestido por um singular ladrilho hidráulico, tão em moda na época, e, protegido por uma bela balaustrada, aproximo-me do beiral em direção à Serra do Mar e quase consigo ouvir o barulho da arrebentação das ondas e o sopro de ar gélido vindo do Oceano Atlântico.
Mas não é possível falar do Edifício Martinelli sem falar sobre seu idealizador, um entre tantos italianos de fibra que deixaram sua terra para fazer fortuna nas Américas. Giuseppe Martinelli, que pelos seus feitos assumiria mais tarde o título de comendador, nasceu no ano de 1870 na cidade de Lucca, onde viveu até completar 19 anos. Tinha o desejo de estudar arquitetura, mas suas condições financeiras não lhe permitiram concretizar tal sonho. Partiu então para o Brasil, país que, ontem, como hoje, atraía a atenção do mundo pelo seu insólito crescimento econômico, onde trabalhou como açougueiro e mascate, antes de montar uma importadora, que foi a origem de uma das maiores companhias de transporte marítimo da época. Em cerca de 30 anos de trabalho, sua companhia de navegação possuía uma frota de 22 navios e ele havia conseguido amealhar uma considerável fortuna. Dinheiro, porém, não lhe bastava. Queria deixar para a história um marco, um tributo a São Paulo por tudo aquilo que lhe havia proporcionado e, imbuído de seu espírito empreendedor, decidiu construir no ponto mais nobre da capital paulista o que foi, por diversos anos, o maior edifício da América Latina.

Mais de 600 operários e 90 artífices italianos e espanhóis trabalharam na construção do Martinelli que, para ser erguido, usou cimento importado da Noruega e Suécia pela importadora do comendador. Todo o material de acabamento (lustres, mármores, espelhos, vidros, estuques, elevadores, louças, portas, ferragens e papéis de parede) também foi importado, já que entre 1924 e 1929, período em que o gigante se ergueu, o Brasil ainda não produzia os materiais necessários para dar vida a essa suntuosa obra que teve origem no projeto de um arquiteto húngaro, mas que ao longo das adaptações que a levaram ao céu, teve o comando nas mãos do próprio Comendador Martinelli.
O prédio era um luxo só: granito vermelho no embasamento, falsa mansarda de ardósia no coroamento e corpo central revestido por uma massa rósea composta por vidro moído, cristais de rocha e mica, que o faziam brilhar durante a noite. Tudo isso para fazer com que seus nobres inquilinos, como jornais, clubes (entre eles o Palestra Itália), restaurantes, um hotel, um cinema e a famosa escola de dança do Professor Patrizi, sentissem-se no melhor dos ambientes.
Quem passa pelo Martinelli hoje tem dificuldade em identificá-lo com o Empire State da América do Sul, um lugar por onde passaram autoridades das mais renomadas em nível internacional, como o Prêmio Nobel e inventor do rádio Gugliemo Marconi. Também é difícil imaginar que foi ao seu redor que o Dirigível Graf Zeppelin deu uma volta ao passar por São Paulo, fazendo-o definitivamente entrar para a história, bem como pode ser difícil acreditar que em suas enormes fachadas foram afixados os primeiros out-doores do país (fazendo propaganda de produtos importados pelo comendador, é claro!).
Com a guerra, e a Itália em posição divergente do Brasil, o Martinelli, então de propriedade do Governo Italiano, foi desapropriado em 1943 pelo Governo Brasileiro e daí para frente entrou iniciou um processo de decadência interrompido somente em 1979, quando a prefeitura de São Paulo resolveu adquiri-lo, restaurá-lo e lá instalar alguns de seus escritórios. Nesse meio tempo e com o início da produção de aço no Brasil, matéria-prima necessária para a fabricação do concreto armado, os arranha-céus multiplicaram-se e o Martinelli acabou se tornando vítima da moda por ele mesmo criada, tendo, em 1947, perdido o título de edifício mais alto o Brasil para o Altino Arantes, construído a apenas alguns passos dele.
Hoje em dia, de seu terraço já não é mais possível admirar a bela paisagem do vale do Anhangabaú, adornado pelos pavilhões gêmeos do Conde Prates, os palacetes de Santa Cecília, ou a Serra do Mar. Vêem-se, ao contrário, os telhados de prédios menores e paredões de vidro e concreto construídos por toda parte como que a lhe gritar que sua época já passou. Os transeuntes da região também já não são mais ricas senhoras a caminho das compras na formosa Rua Direita, ou políticos e executivos apressados para o trabalho.
A obra tinha que ser imponente, de forma a representar a ascensão social e econômica dos italianos em terras paulistanas, após um difícil início, muito semelhante ao de todos os imigrantes, e que culminou com a transformação desta cidade, deste estado e deste país numa terra não só de promessas, mas de realizações.
Segundo noticia da época, o surgimento do Itália fez com que o perfil urbano de São Paulo fosse alterado de maneira marcante. É como se ele resgatasse para os italianos o passado de glórias do Martinelli, um resgate que até hoje não foi suplantado, já que o Edifício Itália continua a oferecer, depois de 45 anos, a vista mais deslumbrante de uma cidade que não pára de crescer.
E o panorama que se descortina do alto desse tributo deixado pela comunidade italiana a São Paulo aos cidadãos do mundo que queiram surpreender-se com as dimensões da maior cidade sul-americana tornou-se possível também graças à vontade de Evaristo Comolatti, outro italiano de fibra que fez sucesso no setor de peças para caminhões e que ao visitar o terraço do Edifício Itália resolveu construir ali um dos mais charmosos restaurantes italianos do país, permitindo, assim, que São Paulo fosse vista do alto da maneira mais agradável possível. Um espaço projetado por ninguém menos que Paulo Mendes da Rocha e Burle Marx, e que já foi visitado por Elisabeth II da Inglaterra, Indira Gandhi da Índia, Édson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, e inúmeras outras personalidades políticas e do show biz internacional.
Famosos e anônimos, paulistanos ou forasteiros, vidas que se entrecruzam, conforme disse Comolatti, para admirar a partir do Terraço Itália Restaurante o coração e o centro motor da atividade industrial desta borbulhenta terra.
Uma cidade orgânica, como bem colocado por Massimiliano Fuksas, grande arquiteto italiano que, em suas passagens por São Paulo, não consegue deixar de admirar a vida que exala. E um observador atento chega às mesmas conclusões ao observar São Paulo à noite, tomando uma boa taça de vinho, sozinho ou acompanhado, do alto do Terraço Itália: o fluxo de veículos lembra a circulação sanguínea, o acender a pagar de luzes no interior dos edifícios vizinhos faz lembrar um gigante ofegante, cujo sopro se traduz na suave brisa noturna. Quem serão essas pessoas, o que fazem, o que pensam, por quais problemas e vitórias passam?
Ah, São Paulo! A maior cidade japonesa fora do Japão, a maior cidade libanesa, fora do Líbano, a maior cidade portuguesa fora de Portugal e, naturalmente a maior cidade italiana fora da Itália. Metrópole com uma das maiores populações do mundo, com uma das maiores frotas de automóveis e com a maior frota de helicópteros. Local onde mais são vendidas Ferraris, única no mundo a possuir mais que uma loja Bulgari, Tiffany, Cartier... Mal sabia Dom Pedro, às margens do riacho Ipiranga, que aquele momento era apenas a primeiro de tantas grandezas que enobreceriam essa cidade, que não tem o Cristo no alto de um morro, mas que do alto de seus edifícios recebe a todos de braços abertos.
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