segunda-feira, 29 de agosto de 2011

CÂNCER: DOENÇA OU MALDIÇÃO?

Fiquei sabendo há alguns dias atrás do afastamento de Steve Jobs da presidência da Apple, e nesta última sexta, ao navegar pela internet, vi uma imagem na qual ele, muito magro, parecia caminhar amparado pela ajuda de uma pessoa. Até aí, tudo bem, não fossem os comentários, mais de 200, que fiz questão de ler um a um. Muitos eram de solidariedade, o que é natural no caso de uma pessoa pública. A maioria, porém, ressaltava que nem a sua incrível fortuna o estava livrando dessa doença. Outros, ainda, transmitiam o mais puro sentimento de pena.
Pois bem, o que tem a ver o dinheiro com a doença? Parece que ter muito dinheiro é uma maldição e a doença grave uma punição. Desde quando dinheiro ganho honestamente, independentemente da quantidade, é pecado ou ofensa àqueles que não o têm? Tenho a sensação de ler nas entrelinhas dessas declarações uma pitada da mais pura inveja. Uma inveja do tipo “ficou rico, mas vai morrer jovem sem poder usufruir daquilo que nunca vou poder ganhar”. Quando muito, o dinheiro aqui pode ser lembrado como um coadjuvante para que tenha acesso aos caros tratamentos e, sobretudo, medicamentos que não raro devem ser consumidos por 1 ou 2 anos, quando não mais, até que a doença seja curada, ou pelo menos controlada, aumentando a sobrevida, ou melhorando a qualidade do que resta da vida.
Outro ponto que me incomodou nessas declarações foi o sentimento de pena. Para começar, se é para ter pena de alguém com uma doença grave, acho lícito que o sentimento também seja externado com os desconhecidos. Por um acaso famoso tem mais direito a pena do que os ilustres desconhecidos? Por um acaso famoso, rico, bonito, jovem e inteligente deve ser imune a doenças que, por alguma razão, devem afetar somente os que não têm nada? Afinal de contas, como já não tem nada, não vai fazer falta! Ora, se querem sentir pena, então que visitem os pacientes internados nas enfermarias do Hospital do Câncer, desenganados e muitas vezes abandonados pela família, ou quem sabe as crianças do Gracc. São milhares os casos de câncer que pululam hospitais de todo tipo, dos mais ricos aos menos afortunados.
O ponto é que os pacientes de câncer, doença que em muitos casos já tem cura, embora dolorosa e inacessível para todos, precisam de solidariedade, força, energia positiva, boas vibrações, ânimo, mas não pena, que não faz outro que os colocar ainda mais para baixo, que lhes dar a certeza de que a vida lhes está esvaindo por entre os dedos, precocemente envelhecidos. Ao invés de ter pena, é mais útil arregaçar as mangas e servir de voluntário, como as senhoras de rosa do Hospital A. C. Camargo, que levam solidariedade e companhia aos que tem nelas a única família.
Como diria Divaldo Franco, mentes que ociosas. Preferem ser solitárias em suas penas e comentários inoportunos, ao invés de serem solidárias. Ademais, não importa se a vida é curta ou longa, mas o que é feito dela e, para que tenha valido à pena, talvez bastem alguns poucos anos.

domingo, 21 de agosto de 2011

MOCINHO OU BANDIDO?

Começo a pensar que há uma inversão de valores nesse Brasil em que vivemos. Normalmente, nas histórias de ficção, há apenas um bandido que faz os mocinhos e mocinhas sofrerem ao longo de páginas e páginas até que, no final, o facínora paga por todos os seus pecados morrendo uma morte violenta, ou sendo encaminhado ao ajuste de contas com a polícia. Pois bem, ocorre que no Brasil parecem existir muito mais bandidos do que mocinhos. Pelo menos é o que se pode inferir a partir da quantidade de denúncias de crimes contra o patrimônio público que há diversas semanas teimam em não sair das primeiras páginas de jornais e capas de inúmeras revistas, sem falar na cobertura da televisão, que é mestra nesse tipo de história folhetinesca. E mesmo que me recusasse em acessar esses veículos de comunicação, fechando-me no mundo cibernético das redes sociais, ainda assim não me veria livre desse tipo de informações, muito comentadas, ainda que de modo extremamente superficial, entre os usuários do Facebook e companhia. Tem tanta notícia sobre roubalheira, que vou propor que só sejam publicadas notícias de falcatruas acima de um certo valor. Senão não se fala de outra coisa.

Isso me faz pensar se não somos nós, os honestos, os verdadeiros bandidos da história. O corrupto está lá, tentando fazer seu trabalho, e constantemente aparece alguém para desviá-lo de sua tarefa. O cidadão nem deseja toda essa exposição na mídia. Só quer cumprir a função para a qual foi eleito, que é a de tomar conta das coisas públicas. Depois, se o dinheiro é público, o corrupto também é dono dele e, portanto, não pode ser acusado de posse indevida. Além do mais, como justamente disse João Ubaldo Ribeiro em sua coluna do Estadão de hoje, prender para que, se vai ser solto logo em seguida? Coisa de honesto invejoso, que reclama por não ter conseguido subir na vida como o corrupto! Preferiu estudar, fazer MBA, mestrado, doutorado, especialização no exterior, quando para ser deputado não é preciso nem saber escrever o nome. Agora agüenta!
Para que perder tanto tempo debruçado em cima de livros? Aliás, não tem corredor de fórmula um por aí se vangloriando que se leu dez livros na vida foi muito? O negócio é por a mão na massa, mesmo que a mão tenha um dedo a menos. Para que estudar, se basta colocar um chapéu de palhaço, fazer uma graça e, em pouco tempo, ser eleito deputado com o maior número de votos da história? Para que perder tempo na escola, se sendo jogador de futebol dá para ficar famoso mais rápido e, com essa fama, ser escolhido para algum cargo público? E se não tiver dotes futebolísticos, basta tentar outro esporte ou, quem sabe, arriscar na carreira musical. Dá na mesma. O sucesso está garantido.
Os professores reclamam que ganham pouco (de pouco mais do que R$ 400 até pouco mais que R$ 1.200) porque não compreenderam esse plano para um Brasil maior iniciado há diversas décadas. Se aprender não está com nada, é lógico que o ofício de ensinar não pode ser valorizado. Depois ainda dizem que o governo não tem coerência com o que faz. Muita injustiça.
No fim das contas, quem deveria ser preso é o honesto, pois é ele quem legitima o corrupto no posto que ocupa. É ou não é? Deveria ser enquadrado no mínimo por crime de formação de quadrilha ou, quem sabe, falsidade ideológica, pois elege o corrupto e depois fica falando mal do sujeito.

No meio desse cenário de filme trash, ainda existem os atores coadjuvantes, que pensam estar fazendo protesto ao votar nulo, ou em branco, quando na verdade, ao fazerem isso, tornam mais fácil a vitória do corrupto, pois o sistema eleitoral brasileiro dá vitória com base nos votos válidos. Isso significa que quem vota em branco também deveria ver o sol nascer quadrado, junto com os honestos.

E o que fazer para mudar os rumos dessa história? Bem, um jornalista outro dia, em poucas palavras, disse que não fazemos nada por sermos habitantes de uma República de Bananas. Escrevemos muito para os jornais, mas não nos unimos para manifestar nosso repúdio contra a corrupção que assola esse país a ponto de acharmos tudo normal. É até engraçado um político ser pego com dólares na cueca, ou afirmar ter ficado rico por ter ganhado na loteria diversas vezes. Chega a ser normal matar o oponente a tiros e depois conseguir eleger o filho presidente da república. É tudo tão normal que o errado parece ser certo. É tudo tão normal que bandido de filme americano, terrorista ou criminoso de guerra, quando conseguem fugir, vêem para o Brasil.
Não sei se somos uma República de Bananas, mas é fato que algo deve ser feito, embora fazer greve de fome, como está fazendo um líder político na Índia, ou tomar as praças, como estão fazendo os espanhóis, conforme exemplos do referido jornalista, não me parece ser o melhor caminho. Se passar fome servisse para alguma coisa, os somalis já teriam conseguido resolver seus problemas. Se ir para as ruas servisse para algo, as diversas passeatas que invadem a Avenida Paulista teriam tido algum efeito, além de transtornar o trânsito ou incomodar a concentração de quem trabalha na região.

Será que a doença desse país, que outro jornalista apelidou recentemente com o nome de um molusco, atingiu um estado assim tão avançado que somente um tratamento de choque, segundo artigo do Daniel Piza, no Estadão de hoje, pode resolver? Provavelmente, sim. Enquanto não faltar comida no prato e o pagode para animar os finais de semana, nada vai mudar. Política antiga, usada desde a época dos romanos: pão e circo para acalmar a turbe. E se não tem pão, como teria dito Maria Antonieta, que o povo coma brioches. O problema é que, ao dizer isso, perdeu a cabeça!
Realmente, esse é o país do futuro, pois com o que temos no presente não podemos fazer muito. Para mudar os governantes, o povo também precisa mudar, instruindo-se para poder julgar, mas também para atuar. Não pode ser normal um país se mobilizar para saber quem foi o assassino de uma trama folhetinesca (e o desfecho nem foi lá essas coisas) e ignorar o assassinato da juíza carioca. Não pode se normal querer saber qual vai ser o ministro da semana a ser levado ao paredão. Não pode ser normal que alguém tenha a profissão de lobista. Não podem ser tidas como normais as coalizões entre partidos para ganhar uma eleição e a posterior retaliação dos cargos públicos como forma de pagamento pelo apoio. Não pode ser normal que um ministro seja escolhido para desempenhar uma função sem qualquer experiência na área (haja visto o deputado advogado, que virou ministro da agricultura, sem nunca ter sequer ocupado cargo de liderança). Não pode ser normal que um partido retire seu apoio porque foi punido por crime de corrupção. Não pode ser normal alguém ser eleito porque, embora roube, faz. Não pode ser normal que somente o câncer continue tirando de cena político safado que abusa da ingenuidade do povo, que ele mesmo ajuda a manter nesse estado.

Ao invés de pão e circo, o povo precisa de livros para aprender a pensar pois, conforme Castro Alves, o livro quando cai n’alma, é germe que faz a palma, é chuva que faz o mar. Enquanto isso não acontecer, honestos, porém ingênuos vão continuar colocando corruptos no poder e ainda por cima vão ser chamados de bananas. Será que é pedir demais?

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

MINHA PRIMEIRA INCURSÃO NO JUDAÍSMO

Participei no último sábado, numa sinagoga de São Paulo, de uma cerimônia de casamento que, por ser minha primeira incursão no judaísmo, uma religião cheia de simbolismos, me deixou atento a tudo, a começar pelo sutil convite, antes de ingressar no recinto religioso, para que colocasse um kipá, aquele chapeuzinho no formato de calota esférica e que representa submissão do homem a Deus.

Ao adentrar na sinagoga, a primeira coisa que constatei foi a simplicidade do ambiente, muito espartano e que, por isso mesmo, pode ser comparado a um auditório. Nada de estátuas, pinturas ou qualquer outra representação de santos ou divindades, que inexistem no judaísmo.
As cadeiras eram razoavelmente confortáveis e com cestas dispostas sob as mesmas, onde são apoiados os livros religiosos utilizados nos serviços. O ambiente não era muito amplo, embora alto e protegido por uma abóboda iluminada e decorada com vitrais, que não pude observar muito, com medo de deixar meu kipá cair!

As paredes do altar eram revestidas de mármore e madeira e continham escritas douradas em hebraico, cujo significado eu desconheço. Na lateral do altar, uma tribuna, onde, acredito, o rabino faz a leitura dos textos sagrados nos dias reservados a essa função. Quase na frente dessa tribuna, chamava a atenção para si um gigante castiçal de 7 velas (no caso, lâmpadas). No centro do altar, uma espécie de caramanchão, a chupá, decorado com delicadas flores e um véu branco, sob o qual os noivos receberam as bênçãos do matrimônio. Pelo que pude ler depois a respeito, a chupá representa a reunião de duas almas, inicialmente ligadas e que foram separadas ao receberem os corpos com os quais entraram no mundo material.
Durante os minutos que antecederam a cerimônia, nenhuma música para alegrar o ambiente, como é comum nas cerimônias católicas. De barulho, somente o cochichar das pessoas, em particular dos homem não judeus, comentando sobre o chapeuzinho e sobre a dificuldade de equilibrá-lo sobre a cabeça, bem como do vai-vem de pessoas tentando se acomodar.

O calor se fazia um pouco intenso naquela noite, o que talvez tenha contribuído para deixar todos um pouco impacientes. A cerimônia estava marcada para começar às 19h30, mas somente às 20h00 teve início. Um atraso calculado para que o ambiente já estivesse tomado pelos convidados quando os noivos ali penetrassem.
Uma melodia com som metálico, vinda de um órgão cuja localização não pude identificar, anunciou o início da cerimônia. Abriram-se, então, as portas localizadas no fundo da sala e adentraram primeiro os padrinhos e depois ao noivo, acompanhado de sua mãe. Como num casamento católico, os padrinhos do noivo ficam num lado do altar e os da noiva em outro.

A parte mais interessante desse início de casamento foi o fato do cortejo ter sido acompanhado por um dos dois rabinos que conduziram os trabalhos. Ele entrou logo após o noivo, se não me falha a memória, entoando um belo cântico em hebraico, que tirou a sisudez que até então havia reinado naquele ambiente.
Antes que a noiva entrasse, o noivo foi coberto por uma espécie de xale branco, com bordados em azul celeste. Fui pesquisar e aprendi que se chama kitel. Lembra uma mortalha e serve, entre outras coisas, para recordar que o casamento deve perdurar até a morte.

A marcha nupcial acompanhou a entrada da noiva. Guiada por seu irmão, ela endossava um vestido branco e reluzente, destacado por um belíssimo buquê de copos-de-leite, com flores amarelas e acobreadas. Um longo véu coroava sua cabeça e se derramava elegantemente sobre suas costas para, somente então, acariciar suavemente o chão sobre o qual ela passava com a alegria que lhe é característica.
Como de praxe, o noivo foi até os pés do altar receber a noiva, tento o cuidado de cobrir seu rosto com o véu antes de conduzi-la à chupá. Esse ato simboliza o fato do noivo não estar se ligando à noiva pela sua beleza, obscurecida pelo véu, mas pelo que ela representa como ser humano. Além disso, por ocasião da cerimônia de casamento, o rosto da noiva reflete toda a luminosidade divina, que o véu tem a função de conter de modo a não ofuscar os que lhe estão ao redor.

O aguardar do noivo pela noiva, tradição também adotada em outras religiões, simboliza o fato do casamento ocorrer por anuência dela, que manifesta seu desejo ao ir de encontro ao seu escolhido.
Como disse, a cerimônia foi conduzida por dois rabinos. O que entrou cantando era um Levy, uma espécie de assessor do que ficou o tempo todo sob a chupá, um Cohen, ou sumo-sacerdote.

A cerimônia prosseguiu com a troca de alianças. Primeiro o noivo colocou a aliança no dedo indicador da mão mais forte da noiva e anunciou em voz alta que a recebia como esposa. Então, ela mostrou a todos seu dedo, consumando a união. Em seguida, foi a vez dela fazer o mesmo, pousando a aliança, que representa a união entre os dois, no dedo indicador direito do noivo, que também a mostrou a todos.
Como reza a tradição, os termos da união entre os noivos são especificados num contrato, que o Cohen recita em voz alta, primeiro em hebraico e depois numa versão compacta em português. Nesse contrato, em síntese, o noivo promete prover a noiva de tudo o que lhe for necessário, como alimento, roupas e direitos conjugais. Esse documento é da noiva, que o deve guardar como um bem precioso.

Seguem, então as bênçãos, uma espécie de homilia da Igreja Católica. Nessa ocasião, o rabino destaca características dos noivos, que lhe são complementares. De um lado a noiva tem a fé, que aproximou o noivo de Deus, e de outro o noivo tem a paciência para controlar a ansiedade de sua já esposa.
Lembrou o rabino as palavras de alguém importante, mas cujo nome não me lembro: sou judeu porque aprendi a não mais ter esperanças e sim a esperar. E com essas palavras, aconselha os jovens cônjuges a não se atropelarem em ansiedades, mas a esperar pelo resultado de seus planos a dois.

Nesse momento refleti sobre as semelhanças entre as religiões que, independentemente de seus simbolismos, de seus dogmas, incondicionalmente exortam a união, a paz, a compreensão entre as pessoas. Naquele ambiente estavam presentes católicos, judeus, espíritas, ateus que, apesar de suas crenças ou descrenças individuais, estavam todos ali com o objetivo único de participar da alegria daquele casal. Por que no dia-a-dia as coisas não podem ser daquele mesmo modo, com pessoas compreendendo-se mutuamente, aceitando diferenças e, talvez, vendo nelas oportunidades para crescerem interiormente e ajudando a sociedade a se tornar um ambiente melhor? Provavelmente porque, como em qualquer religião, dentro dos templos somos anjos, mas apenas traspassadas suas portas para o mundo exterior, tornamo-nos figuras irracionais. Coisas da evolução ...
Bem, a cerimônia terminou com a quebra do cálice, que representa muitas coisas, entre as quais a lembrança da destruição do Templo de Jerusalem e a espera de que um dia seja reconstruído. A destruição do templo é algo muito triste para os judeus e deve ser lembrado mesmo nos momentos mais felizes, como é o casamento.

Seguiram-se abraços, música e uma bela festa, que não privou os convidados das músicas tradicionais e do momento em que os noivos, sentados em cadeiras, que representam tronos, são levantados ao ar, pois naquele dia de festa, são considerados reis.

domingo, 7 de agosto de 2011

O MELHOR DA MINHA VIDA FOI TER PODIDO AJUDAR OS DEMAIS

Meu primeiro encontro com Rita Levi-Montalcini foi, por assim dizer, dos mais impessoais. Aconteceu há pouco mais de 2 anos, talvez 3, em meu escritório, quando trabalhava num projeto de promoção do Made in Italy aqui no Brasil. Naquela ocasião, procurava todo tipo de texto que, de alguma forma, me ajudasse a provar que a Itália é um grande pólo desenvolvedor de talentos, tecnologias, design e arte. Foi então que recebi uma cópia da agenda editada pela Embaixada da Itália para o ano seguinte e que dedicava cada mês do calendário a uma personalidade italiana diferente.

Entre textos e fotos de pessoas cujos feitos gravaram seus nomes na história, como Alessandro Volta, Enrico Fermi e Galileo Galilei, lá estava ela, meio tímida, numa foto em que pousava delicadamente sua mão direita sobre um globo terrestre e com a esquerda o segurava, como se o quisesse proteger. Mas o que mais me chamou atenção nessa figura vestida de preto, já de certa idade e com o rosto sulcado por marcas do tempo, foi sua semelhança com minha avó paterna, com a qual fui, e de certa forma ainda sou, apesar de ter sido privado há muito tempo da convivência quase que diária, extremamente ligado.

Desprendendo por um momento o olhar daquela foto, que me despertou ternas lembranças e muitas saudades, comecei a ler o texto, que falava um pouco sobre a vida dessa senhora. Muito sucinta, a biografia dizia que Rita Levi-Montalcini, nascida em Turim em 22 de abril de 1909, havia se formado em medicina e que havia sido condecorada com o Prêmio Nobel de Medicina, em 1986, pela descoberta, aliás, sob condições bastante adversas, do NGF, sigla em inglês para Nerve Grouth Factor, ou fator de crescimento dos nervos, uma proteína que favorece o crescimento das células do sistema nervoso e que, segundo estudos recentes, está intimamente ligada às doenças degenerativas do cérebro, como o mal de Alzheimer e a doença de Parkinson.

Bem, tendo nascido em 1909, teria então perto de 100 anos se estivesse ainda viva e, para minha surpresa, estava. Há poucos meses desse nosso encontro, completaria um século de vida, comemorada com toda pomba e circunstância em toda a Itália. Noticiários, especiais e entrevistas em importantes programas de televisão não deixaram de marcar a data, o que, para mim, foi de grande importância para levantar informações sobre essa figura fascinante.
Conforme mais ficava íntimo dela, maior era a vontade de conhecê-la pessoalmente. Seria como conhecer uma grande personalidade, que havia vivido as maiores transformações e fatos da nossa recente história, e reencontrar minha avó, cuja lembrança suas feições insistiam em me recordar.

No meio dessa pesquisa instigante, descobri que Rita Levi-Montalcini, havia nascido numa bem estruturada família de origem hebréia, filha de um engenheiro e de uma proeminente artista plástica. Entre seus irmãos estão Gino, um dos mais famosos arquitetos italianos, e Paola, irmã gêmea, insigne pintora. A infância foi tranqüila, cercada de amor, embora de acordo com as rígidas normas de uma família vitoriana, como faz questão de sublinhar.

Conta ela numa das várias entrevistas realizadas por ocasião de seus 100 anos de nascimento que, com 5 anos de idade, havia visto um chapéu adornado com flores e cerejas que pediu para seus pais comprarem. Entretanto, seu pai recusou-se a satisfazer seu desejo, considerando-o inadequado. Pensou ela, então, porque deveria um homem, com tantos afazeres e responsabilidades, ocupar-se até mesmo da escolha das vestimentas dos filhos. Foi aí que decidiu que, em idade ainda tão precoce, decidiu que jamais se casaria, pois não poderia viver sob o comando de alguém, como exigia a sociedade da época.

Passaram-se anos e, então, começou a tomar vida sua promessa. Pediu autorização para seu pai para que pudesse estudar medicina, curso no qual se formou às portas da eclosão da segunda guerra e durante a qual teve sua única experiência na profissão, já que foi como pesquisadora que deu vazão à sua vontade de aprender. Essa escolha tinha origem na admiração pelo médico Albert Schweistzer, que havia ido para a África combater a lepra. Desejava ajudar os que sofriam.
Quiseram os fascistas que ela, não descendente da raça ariana, interrompesse sua carreira. Isso, entretanto, não aconteceu. Aliás, foi num pequeno laboratório, montado dentro de seu quarto, que ela teve o primeiro contato com o NGF, cuja existência viria a provar tempos depois, numa longa permanência nos Estados Unidos, que inclui um ano de estudos, em 1952, no Instituto de Biofísica do Rio de Janeiro, onde teve a oportunidade de conhecer Carlos Chagas Filho, com o qual travou uma longa amizade, como relata uma matéria da revista Super-Interessante, em um de seus primeiros números.

O reconhecimento pela descoberta, realizada paralelamente e independentemente por outro cientista, Stanley Cohen, veio em 1986, pelas mãos do Rei da Suécia. Em entrevistas, conta que lia um livro de Agatha Christie quando lhe ligaram para anunciar que havia sido escolhida para receber o Prêmio Nobel de Medicina daquele ano, ao que havia respondido que estava muito honrada com a notícia.

Mas esse foi apenas um de tantos coroamentos de uma longa vida, que teria tudo para se encerrar publicamente pouco depois da ida a Estocolmo, quando já contava com 77 anos, se não fosse por sua vontade de ajudar a quem precisa. Aliás, uma das frases de Rita Montalcini que mais me marcaram diz exatamente que o objetivo da vida é aprender a desinteressar-se de nós mesmos e interessarmo-nos do mundo que nos circunda, é compreender o mundo e fazer o possível para ajudar quem precisa. E com essa retórica, fundou uma ONG com sua irmã Paola, em 1992, com o objetivo de levantar fundos para ajudar as mulheres da África. Escolheu ajudar as mulheres, pois são elas as grandes desfavorecidas das sociedades de sempre, não obstante nas sociedades ocidentais tenham sido verificados grandes avanços a favor do chamado sexo frágil. Já a África, foi seu foco desde o início da carreira, mas também por concentrar nos seus diversos países grandes desigualdades, que tendem a diminuir quando a família, base da sociedade, conta com uma base sólida, na qual a figura da mulher e também mãe tem papel crucial.

Hoje, aos 102 anos, diz que não sabe quando vai morrer e que nem mesmo esperava viver uma vida tão longa. Afirma que o que interessa é o que faz a cada dia. Trabalha para que as jovens africanas estudem, prosperem e ajudem seus países. Pesquisa. Pensa.

Não fala em se aposentar. Verifica que muitos se aposentam e matam seus cérebros, abandonam-se, adoecem. Seu corpo pode enrugar, o que é inevitável, mas seu cérebro continua pensando com quando tinha 20 anos. Não vê diferença! Afirma que ao manter o cérebro ativo, ele não degenera. Ainda que os neurônios morram, os que permanecem conseguem se reorganizar para compensar a perda. Entretanto convém estimulá-los, recomenda, mantendo a curiosidade, a vontade de aprender, o empenho e a paixão pelas coisas. Desse modo, podemos não viver mais, mas vivemos melhor.

Perguntada sobre o que faria se pudesse ter 20 anos novamente, respondeu sem pestanejar: Já estou fazendo!

Nunca tive ídolos e nem achava muito razoável adorar pessoas. Entretanto, após ler tanto sobre Rita Montalcini, que quando pequena se achava um patinho feio, inferior a seus irmãos e genitores, com destacado intelecto, não pude nutrir certa vontade de conhecê-la pessoalmente.

No ano passado, fui até a sede da sua ONG, na expectativa de eventualmente encontrar com ela no elevador, ou quem sabe ter a sorte de ser recebido por ela. Não quis o destino que esse acaso ocorresse. Entretanto, estive em sua sala de reuniões, sentei-me na mesma cadeira em que se sentou em uma das recentes entrevistas para a televisão italiana, passei os olhos por seus vários prêmios e condecorações, toquei em seus livros e conversei longamente com sua assessora de muitos anos, Giuseppina Tripodi, com a qual escreveu alguns livros e da qual tirei a promessa de me levar a uma breve conversa, que seja, com esse exemplo de pessoa. Quem sabe no próximo ano, disse eu, ao que ela respondeu, com olhar meio vazio e sem a certeza de poder cumprir sua promessa:  Certamente.

Recentemente fui convidado para participar de um seminário organizado pela ONG Rita Levi-Montalcini, que acontecerá no próximo dia 11 de outubro. Espero nessa ocasião conseguir finalmente conhecer Rita Levi-Montalcini.