Depois de falar sobre o Comendador Martinelli, que construiu em São
Paulo o primeiro arranha-céu do país, sobre Ugo Castellana, que trouxe o
conceito de alta costura para o país e sobre Emilio Romi, instigante
personalidade que do nada construiu uma das maiores indústrias metalmecânicas
do país, para não falar do Romiseta, um dos primeiros automóveis fabricados no
Brasil, quando me incumbi de escrever sobre Victor Civita para a edição de 2013
da Itália em São Paulo, tinha em
mente, naturalmente, desvendar mais uma personalidade intrigante que deixou a
Itália para ajudar a construir São Paulo.
Para tanto, comecei a maquinar como chegaria a seus filhos e netos, de
modo a saber um pouco sobre esse italiano, na verdade nascido em Nova York,
sobre as razões que o fizeram vir para o Brasil e sobre as origens de um dos
maiores grupos editoriais e de educação da América Latina, com faturamento
anual da ordem de 3 bilhões de reais e mais de 9 mil funcionários.
Foi aí que me dei conta que conhecia seus filhos desde a infância, como
ninguém, já que havia crescido com eles. Não, não me refiro a Roberto, que
encontrei en passant em certo evento
social, ou a Richard, cuja existência, confesso, fiquei sabendo há pouco tempo.
Refiro-me sim às inúmeras obras editadas pela Abril e que me acompanham desde
muito pequeno, antes mesmo que fosse iniciado no universo da leitura.
Revirar a memória em busca dos encontros com esses filhos de Civita me
traz lembranças de inúmeros momentos agradáveis, pois numa época em que TV a
cabo, computadores, internet e congêneres só existiam na mente de Júlio Verne,
HG Wells e outros visionários de plantão, para viajar sem sair de casa ocorria
mergulhar em tantos livros quanto o tempo e a vontade permitissem. E como eu
tinha vontade de viajar!
Meu primeiro contato com uma obra da Abril deu-se com uma colação de
discos de vinil, acompanhados de livrinhos ilustrativos e que contavam diversas
histórias da literatura infantil, encenadas pelos personagens da Disney. Nem
sei quantas vezes ouvi aqueles discos, cujo fim eu igualmente desconheço. Só
sei que muitas dessas histórias ficaram de tal maneira gravadas na minha
memória e com uma incrível riqueza de detalhes que, muitos anos depois, quando
pude assistir pela primeira vez a muitos dos desenhos animados que contavam as
mesmas historinhas infantis, tinha a impressão de estar vendo algo que já tinha
visto antes.
E foi assim que fui primeiramente apresentado aos Irmãos Grimm, a Hans
Christian Andersen e a Lewis Carroll para, em seguida, com a mesma voracidade e
já sabendo ler, atacar as histórias de Monteiro Lobato (numa época em que Tia
Anastácia era apenas a personagem que fazia os melhores quitutes do planeta e
não objeto de lutas raciais) e uma séria de lendas que permeiam a cultura
brasileira.
Mais ou menos na mesma época, caíram nas minhas mãos uma série de
manuais, cada um especializado num assunto, todos com histórias vividas por
personagens da Disney. Alguns desses livros eu ainda tenho, como o Manual do
Professor Pardal, que tratava de invenções e inventores, do Manual do Peninha,
que falava sobre a profissão de jornalista, do Manual do Tio Patinhas, que falava
sobre grandes fortunas, naturalmente, ou do Manual da Maga Patalógica e da
Madame Mim, que discorria sobre histórias da mitologia universal.
Lendo esses livros infantis, sem falar nos gibis, muitos dos quais
contando histórias – não só com personagens Disney, mas do Maurício de Souza
também –dos grandes clássicos da literatura universal (recentemente
reeditados), tomei gosto pela literatura e cada livro que aparecia na minha
casa, folheava com o cuidado que se tem por um irmão mais novo.
Foi assim com a coleção Gênios da Pintura, obra que detalha a vida de
mestres da pintura universal, cujos trabalhos tive o prazer de conhecer
pessoalmente anos depois, mas também com Os Bichos, através da qual conheci dos
mais bizarros, aos mais comuns animais, com Grandes Personagens da Nossa
História e Grandes Personagens da História Universal, que retratam em imagens e
textos a vida de inúmeros personagens que construíram o mundo em que vivemos,
com Os Economistas, obra que me apresentou aos pensamentos de Adam Smith e sua
Riqueza das Nações, ou ao Manifesto, de Karl Marx, ou ainda, com Nossas
Crianças, literatura para adultos aprenderem a lidar com crianças e que me
chamava a atenção pelas hilárias tiras da Mafalda.
“Bendito o que semeia livros e manda o povo pensar”, trecho de um poema
de Castro Alves e que resume bem o trabalho desse italiano visionário, fazedor
e resolvedor de problemas, conforme era descrito por funcionários,
colaboradores e parceiros.
Não chegou no Brasil com uma mão na frente e outra atrás, como aconteceu
com inúmeros imigrantes, de diversas origens e que ajudaram a construir este
país. Na verdade, contava com polpudos 500 mil dólares de recursos próprios
(tanto pai, quanto a mãe tinham origens abastadas), além de empréstimos que
levantou na praça e outros conseguidos por meio de sociedade com importantes
grupos da época. Sua condição financeira, porém não lhe tira o brilho de ter
empreendido um negócio num país que lhe era totalmente estranho, da língua aos
costumes, e num segmento que depende do gosto pela leitura que, convenhamos,
nem mesmo hoje está enraizado entre os brasileiros.
O fato é que o homem parecia não perder uma boa oportunidade e, num
encontro que teve com seu irmão mais velho, durante férias que passavam na
Itália (àquela altura, deixando para trás o caos da Guerra, os Civita já não
mais viviam na terra natal), escutou com atenção a experiência dele com uma
editora, chamada Abril, que havia aberto na Argentina. O empreendimento nasceu
da experiência de César no ramo, adquirida quando ainda morava na Itália, onde
trabalhava numa das maiores editoras italianas, a Mondadori, e onde se tornara
responsável pela versão italiana das revistas Disney. Ora, com a eclosão da
Guerra, no final dos anos 30, procurou por Walt Disney, nos Estados Unidos, e
obteve dele licença para publicar suas revistas na América do Sul.
Conversa vai, conversa vem, e César afirma que andava meio desconfiado
dos rumos da política na Argentina, com a ascensão de um certo líder populista,
com perfil bastante semelhante ao de outros líderes populistas que levaram a
Europa à Guerra, o que lhe fazia ter vontade de abrir o mesmo negócio no país
vizinho, que lhe parecia promissor.
Essas palavras soaram como música para Victor, que interrompeu suas
férias e voou imediatamente para Buenos Aires conhecer a tal Editorial Abril e,
em seguida, para o Rio de Janeiro e São Paulo, que lhe pareceu mais simpática e
próxima dos centros cosmopolitas onde estava acostumado a viver (primeiro Milão
e depois Nova York), decidindo ali se estabelecer (apesar de conselhos
contrários, em virtude da falta de jornalistas, de artistas gráficos e uma
série de recursos que a acanhada província de então não dispunha).
Tudo muito rápido, como deve ser no mundo dos negócios, e em cinco meses
a família estava estabelecida no centro de São Paulo (mais precisamente no
Hotel Esplanada, edifício hoje ocupado pela sede do Grupo Votorantim), muito
próxima do endereço, na Líbero Bararó, escolhido para acolher a Editora Abril,
que no dia 12 de julho de 1950 publica o primeiro número de O Pato Donald
(cheguei a ter uma reedição desse primeiro número, que contava a história do
Segredo do Castelo, um clássico!).
Rapidamente, como o nascimento da Abril, O Pato Donald já era a
revistinha mais vendida do país e, no seu rastro, seguiram-se outros títulos
infantis, mas também as fotonovelas e, já nos anos 1960, em meio ao nascimento
da indústria automobilística brasileira, uma publicação dedicada ao setor.
Trata-se da Quatro Rodas.
Mas o sucesso não para por aí e, ao perceber o crescimento da classe
média, resolveu lançar os livros em fascículos. Novamente, foi desaconselhado
e, novamente, contra todos, resolveu seguir seu instinto, deixando para seus
diretores apenas a opção de lançar uma enciclopédia, sua primeira opção, e uma
edição da Bíblia Sagrada, de criação da italiana Fabbri e intitulada A Bíblia
mais Bela do Mundo. Os diretores optaram pela Bíblia, que vendeu mais de 150
mil cópias, deixando a enciclopédia para um segundo momento. Pois bem, a
enciclopédia era a Conhecer (fecho os olhos e me vejo debruçado sobre esses
livros, fazendo meus trabalhos escolares), publicação que bateu a marca dos 500
mil exemplares. Que tino para os negócios tinha esse homem!
Tudo lhe parecia possível e, ao propor a seu filho mais velho a criação
de uma cadeira de hotéis turísticos, ouviu uma negativa, que ignorou e hoje
temos a cadeia de hotéis Quatro Rodas. É verdade que não sabemos nada sobre
hotéis, disse ao filho, mas também é verdade que o Nick Hilton não sabia nada
sobre esse assunto quando resolveu abrir sua cadeia de hotéis. Também notou que
no país não haviam armazéns refrigerados e, mais uma vez, lançou-se no escuro,
com o mesmo sucesso das demais empreitadas.
Via oportunidade em tudo. Se notava que algo não existia, ao invés de
pensar que não existia porque não havia
mercado para aquilo, preferia pensar que não existia porque ninguém havia tido
aquela ideia antes.
Claro que empreendedorismo sem dedicação não geram sucesso e Civita pode
ser considerado o ídolo dos perfeccionistas. Chegava cedo, saia tarde, tinha a
mesa impecável e incrível atenção nos detalhes, do layout aos textos que seus
editores preparavam, sem deixar passar um erro ortográfico (e o português não
era sua primeira língua!).
Achava que tinha que educar o povo, que com o gosto pela leitura,
compraria mais livros, fascículos e revistas, de uma série que, atualmente,
passam pelo campo do entretenimento, da moda, da decoração, da política e dos
fatos quotidianos, do turismo, do automobilismo, dos negócios e por aí vai. Com
essa ideia na cabeça de educar, criou uma Fundação, que leva seu nome e que tem
por missão “contribuir para a melhoria da qualidade da Educação Básica no
Brasil, produzindo conteúdo que auxilie na capacitação e valorização de
professores e gestores e influencie políticas públicas”.
Alguém pode se questionar: tinha que ter feito isso? Tinha que ter
destinado após a morte todo o seu patrimônio em dinheiro, imóveis e ações (aos
filhos deixou as empresas, pois achava que se não conseguissem sobreviver delas,
não eram dignos de as receberem ) para essa fundação? E eu respondo, não tinha.
Educação ainda é uma das prerrogativas do governo. Entretanto, já que o governo
não faz, ou pelo menos não como deveria fazer, Civita resolveu prestar seu
auxílio e, talvez por isso mesmo, tenha definitivamente gravado seu nome na
história deste país. Deixou sua marca e confesso que, ao saber que havia
morrido, senti um certo aperto, como se tivesse perdido alguém muito próximo e
que, de fato, de certo modo me foi muito próximo.
Numa das obras editadas por sua empresa e por ele prefaceadas no
longínquo 1969, faz citação a Monteiro Lobato e lembra que um país se faz com
homens, livros e, adiciona Civita, exemplos. Nesse mesmo texto, exalta a jovem
nação brasileira, de proporção continental, tão assoberbada de problemas quanto
acumulada de riquezas, e afirma que o Brasil deve sua grandeza, sua liberdade e
projeção internacional à ousadia dos bandeirantes, à fé dos catequistas, ao
idealismo dos inconfidentes, à sabedoria dos legisladores e à inteligência,
coragem e dedicação dos seus soldados, diplomatas e artistas. É o exemplo
dessas personalidades, continua, que desejo projetar no futuro das gerações,
como lição e incentivo. Creio ter ele cumprido sua missão.
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