O dia estava perfeito para uma conversa com a arquitetura e as
artes. O céu azul de brigadeiro contrastava com os verdes das árvores, que
clamavam despudoradamente por atenção, num desfile assoberbado de folhagens de diferentes
tonalidades e texturas. Também do céu soprava a brisa fresca da manhã, que
mitigava o calor do sol já alto e que parecia esquecer-se que os primeiros dias
de outono já haviam desabrochado.
Como era uma sexta-feira santa, o trânsito estava bem camarada
e o percurso dos arrabaldes de São Paulo, às margens da Rodovia Raposo Tavares,
onde moro, até o espigão da Avenida Paulista foi feito em pouco menos de 30
minutos.
Deixei o carro num estacionamento da região (meu destino não
tem estacionamento próprio) e caminhei dois quarteirões até chegar ao número
1578, endereço de um antigo mirante, de onde, em dias com céu aberto, até os
idos dos anos 60/70, era possível avistar todo o vale do Anhangabaú até a Serra
da Cantareira.
Bons tempos esses em que Avenida Paulista era um local de
veraneio, onde as famílias abastadas possuíam suas chácaras, nas quais podiam
desfrutar do ar puro do campo e, ao mesmo tempo, estarem próximas do centro de
uma das cidades que, poucos anos depois, tornar-se-ia uma das maiores do mundo,
com todas as complicações que comporta ser gigante.
Enquanto caminhava, imaginava como se sentiria um viajante
do tempo ao pousar na Paulista 100 anos depois da sua fundação, que seu deu,
aliás, por iniciativa de Joaquim Eugênio de Lima, engenheiro e jornalista que planejou
o loteamento da região e que, em testamento, doou para a cidade de São Paulo o
terreno onde o prefeito Ademar de Barros mandou erguer a atual sede do Museu de
Arte de São Paulo, meu destino daquela manhã.
Pássaros certamente não gorjeiam mais por lá, embora vez ou
outra um sabiá-laranjeira esqueça-se que cidade grande não é lugar de
passarinho cantar e, pousado numa ou outra árvore que desafiam os imponentes
edifícios, solta seu canto em meio à multidão sempre apressada. Os mais sensíveis
param para ouvir essa sinfonia da natureza, mas a maioria não consegue sequer
presta atenção aos buzinaços, aos toc-tocs dos calçados e ao barulho dos
motores dos automóveis, para não falar das incontáveis manifestações a favor
dessa ou daquela causa.
O modo de se vestir também mudou um pouco. Bem, na verdade,
mudou muito. Nem tanto para os homens que, basicamente, deixaram de usar seus
elegantes chapéus. Já as mulheres, essas fizeram uma verdadeira revolução no
guarda-roupa, encurtando vestidos, alongando decotes, eliminando acessórios e
incluindo outros, às vezes com bom gosto, às vezes apenas com gosto.
Quantos pensamentos, tão diferentes e em tão pouco espaço de
tempo!
De repente, minha caminhada chega ao fim e meu destino descortina-se
bem à minha frente, um tanto quanto sem o lustro que um dia já teve, mas ainda
com certa imponência, intrínseca ao seu passado e ao rico conteúdo que guarda e
que já foi visto pelo povo e por majestades de diferentes origens. Cerca de 845
mil por ano. Muito? Bem, digamos que o potencial ainda não foi explorado na sua
total plenitude.
O espelho d’água que banha os pés do edifício projetado por
Lina Bo Bardi está esverdeado, anunciando que algo de errado paira por aqueles
domínios. Observo com mais atenção e, além do musgo, um guarda-chuvas aberto e
meio quebrado ocupa o local onde carpas coloridas um dia habitaram. Olho para
cima e vejo que as colunas vermelhas, que sustentam e envolvem a imponente
caixa de vidro estão meio sem vida, consumida pelo peso dos anos. Mas afinal de
contas, o edifício nem é tão idoso assim. Foi inaugurado em 1968!
Caminho um pouco mais além e uma lufada de fumo (sim, aquele
mesmo que é proibido, mas cujo livre consumo vem sendo bastante defendido
ultimamente) me faz parar ao ponto de me entristecer, assim como a pequena
multidão que, sem destino, protege-se das intempéries no grande vão de 74m e
que já foi o maior do gênero no mundo. Entretanto, um inesperado som de
clarinete começa a ecoar por aquele imenso vazio, desfazendo qualquer
pensamento mais pesado, dando vida e alegria a quem ousasse escutá-lo. Eu ousei
e, levado por sua graciosidade, fui me aproximando da bilheteria, onde outra
pequena multidão aguardava para comprar seus ingressos. Mais um motivo de
alegria, pois acreditava encontrar bem pouca gente por lá naquele primeiro dia
de um longo feriado. Brasileiro gosta sim das ciências e das artes, concluí.
Bem, brasileiros e estrangeiros, que dividiam de igual para igual os corredores
do museu.
Falando em museu, essa palavra nunca me agradou. Lembra coisa
velha, cheirando a mofo, com ar decadente, coisa que o MASP está longe de ser,
apesar dos problemas pelos quais passa e que, vira e mexe, aparecem na mídia.
Eu prefiro galeria, termo mais cool,
como diriam os amigos anglo-saxônicos, que remete espaço vivo, com gente
moderna e culta, que busca ver, mas também ser vista. E não é que foi essa a
sensação que tive ao desembarcar, depois de um longo inverno, no segundo andar
do edifício.
Mas como assim, em constante movimento, pode estar se
perguntando você, que está lendo este artigo, neste momento? E me antecipando à
sua provável dúvida, te digo que a coleção do MASP, reunida ao longo de várias
décadas, a partir de 1947, está em constante movimento para poder expor seus mais
de 8 mil itens catalogados, mas não todos de uma vez, o que seria impossível no
atual imóvel que, entre seus vários ambientes, possui algo em torno de 11 mil
metros quadrados. É obra “pra chuchu”! Pense bem, é como se a cada passo o
visitante desse de cara com um Rembrandt, um Renoir, ou um Van Gogh, para citar
apenas alguns dos grandes mestres da pintura universal que se alternam entre as
salas do primeiro e do segundo andar, além das várias salas do sobsolo, que
compreendem a chamada reserva técnica, uma caixa-forte que repousa a alguns
metros abaixo da Avenida Paulista e onde a maior parte do acervo é guardada
enquanto aguarda sua vez de ser vista, segundo critérios que têm mudado ao
longo dos anos, conforme a proposta do curador-chefe em atividade.

Quando inaugurado o espaço da Avenida Paulista, em cerimônia
que contou com a ilustre presença de Elisabete II, Rainha da Inglaterra, Lina
Bo Bardi propôs que o acervo fosse exposto num salão sem paredes, no qual o
visitante pudesse ver todas as peças de uma vez só, sem barreiras. Para tanto,
as obras eram içadas do chão por cabos de aço e protegidas entre placas de
vidro sustentadas por colunas de concreto. A ordem era ditada pelo período da
obra e sua origem geográfica. Gostava desse conceito, abandonado no final dos
anos 1990, quando as tradicionais paredes divisórias passaram a dar o tom de
ordem ao local.
Com as paredes, veio o conceito de reunir as peças por tema
e o deste momento reside no detalhe, conforme assevera o seguinte texto
colocado bem no ingresso da exposição: “Durante longo período, a arte foi um
tributo ao detalhe, indício forte do valor de um artista. Uma flor, um relógio
sobre uma mesa, um sorriso, constituíam a base narrativa. Foi então que o
detalhe começou a dissolver-se, até sair de cena”.
O detalhe desse texto, que abre a exposição “O Triunfo do
Detalhe e depois, o nada” parece compor com maestria esse nada. Despercebido
pelas pessoas que por ali passavam, embora bem na abertura da exposição, fazia
companhia ao busto de Deus Pai, do Italiano Girolamo Santa Croce, que preenchia
outro vazio, o do alto da escadaria que une o primeiro e o segundo andares do
edifício. Separado do paredão que marca o inicio da exposição por outra parede,
sendo essa de vidro, o belo busto de mármore de Carrara possui mais de 500 anos
e retrata um Deus com ar meio triste, cabisbaixo, olhando em direção a sua
criação, do alto das nuvens sobre as quais repousa. Parece saber-se esquecido.
Mas não se pode falar em detalhes sem se deter no detalhe do
próprio edifício, exemplo da arquitetura brutalista, espécie de movimento desenvolvido
por arquitetos modernistas por volta dos anos 1950 e 1960 e cujo conceito
reside em não esconder os elementos estruturais, o que se conseguia, por
exemplo, deixando o concreto armado à mostra, ou destacando os perfis metálicos
de vigas e pilares. Foi concebido pela arquiteta Lina Bo Bardi, esposa do
jornalista e crítico de arte Pietro Maria Bardi que, ao vir ao Brasil como
curador de uma exposição de obras italianas, foi convidado pelo rei das
comunicações de então, Assis Chateaubriand, ou simplesmente Chatô, a criar no
Brasil um museu de artes antigas e modernas. Aceitou ajudar a criar um museu de
artes, sem distinção entre antigo e moderno, à frente do qual ficaria por
apenas um ano. Acabou ficando por quase cinco décadas.
Enquanto Bardi buscava obras de valor em países recém-saídos
de duas grandes guerras, com tudo a ser refeito e dinheiro nenhum para pagar as
contas, colocando no mercado grande quantidade de obras a preços baixos,
Chateaubriand corria atrás de fundos para a aquisição dessas obras, coadjuvado
por seu fiel escudeiro e diretor de finanças de seu grupo de comunicação,
Edmundo Monteiro, que propunha à florescente burguesia industrial a troca de
espaço publicitário por polpudas somas de dinheiro necessárias para dar vida ao
MASP.
Nesse ínterim, Lina encontrava no Brasil um país livre das
amarras do passado, onde podia criar livremente, segundo o padrão modernista de
então, de difícil aceitação na Europa e que já fervilhava nas mentes de nada
menos do que Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Cândido Portinari e Burle Marx, entre
outros nomes que teve o prazer de frequentar.
Inspirada pelo país onde escolheu viver e pelas amizades que
por aqui conseguiu fazer, Lina criou um edifício que se destaca na paisagem e
que se tornou cartão postal de São Paulo. Por desejo do doador do terreno à
prefeitura, não podia construir no local obra nenhuma que interferisse na
amplidão do panorama (mal sabia ele que esse panorama seria destruído pela
ocupação desordenada da cidade, ao longo da Avenida 9 de Julho), o que
demandava a construção de um edifício subterrâneo, ou um suspenso. Entre uma e
outra, Lina escolheu as duas!
Nos dois andares que se erguem sobre quatro pilares,
projetou espaços onde expor a coleção do museu (galeria!) e mostras
temporárias. No subsolo, construiu auditórios, mais salas de exposições
temporárias (eu me lembro de uma memorável sobre Picasso e outra sobre Dali,
com filas homéricas para entrar e ver cada obra), uma livraria (já viram museu
sem uma livraria?) e um restaurante.
Falando em restaurante, aliás, que saudades da época em que
o espaço se chamava Degas, em homenagem ao francês que se eternizou ao
retratar, em telas e bronzes, bailarinas nas mais diversas posições. Comia-se
muito bem (hoje também, mas sem o glamour de então) ao som de um agradável quarteto
de cordas. Coisa chique ao alcance de todos os bolsos!
Mas Edgar Degas, nesse vaivém de detalhes que compõem um
acervo montado ao longo de décadas não marcou seu nome apenas no espaço
gastronômico do museu. Quem acha isso, não sabe que, além do MASP, somente o
Museu D’Orsay, de Paris, e o Metropolitan, de Nova York, possuem a coleção
completa de73 bronzes do artista. Uma das peças, aliás, faz parte da atual
exposição. E que peça! Trata-se de uma bailarina, com os cabelos trançados, os
braços para trás, a cabeça altiva e um dos pés prontos para girar e fazer seu
vestido de tecidos leves rodar, dando indescritível graça ao movimento.
E como falar de bronzes sem citar o exemplar A Eterna
Primavera, de August Rodin, que compõe a coleção do MASP. Olho para os dois
amantes, Cupido e Psiquê, beijando-se calorosamente, como se nada mais no mundo
importasse, e fico imaginando como a mão humana consegue reproduzir os detalhes
daqueles corpos contorcidos com tamanha perfeição. Parece que, nessa ocasião,
Rodin brincava de ser Deus, ou este brincava com os homens através de Rodin,
procurando despertar-lhes a pureza de um sentimento, imortalizando-o num
material tão frio.

E falando em Deus, volto minhas memórias daquele dia para o
segundo andar do acervo, passo novamente pela estátua de Girolamo Santa Croce e
sigo o percurso sugerido por um dos guardas, sentado num banquinho, sem se
acreditar ser parte daqueles detalhes. Acato sua sugestão e começo minha
exploração por uma recém-restaurada tela de Vitor Meirelles. Passaria batido
por essa, se não estivesse gravada na minha mente, como se a tivesse vendo pela
primeira vez, ilustrando uma das páginas de uma coleção da Editora Abril,
intitulada Grandes Personagens da História do Brasil. Bem, a personagem da
tela, embora tenha cedido seu nome a um importante bairro de São Paulo, não é
das mais conhecidas. Nem por isso, porém, a cena retratada por Meirelles, no
final dos anos 1800, deixa de representar com maestria os primeiros anos do
Brasil, pós-descobrimento. Bem, a personagem é Moema, irmã da índia Paraguaçu,
trazida pelas águas nas quais se havia atirado, num acesso de loucura, atrás do
navio que levava Paraguaçu e seu marido, Caramuru, grande amor de Moema, para a
distante Europa. Na tela, não parece morta, mas apenas adormecida sobre as
areias aquecidas pelo sol de um final de tarde e acariciadas pela volúpia do
mar.
Deixo Moema em seu sono profundo, que chegou a incomodar a
crítica da época (afinal de contas, criticar é mais fácil do que fazer), para
continuar meu mergulho nos detalhes. Fico impressionado com o tom de azul,
muito intenso das paredes. Cumprem muito bem seu papel de destacar cada tela
exposta, começando por um longo desfile de representantes da escola flamenga. É
incrível que como, do alto de seus 400 anos, não parecem ser obervados. Ao
contrário, parecem observar, sorrir, cumprimentar-nos. Acho até que gostam
desse encontro, do diálogo de olhares travado entre eles e os visitantes, nos
quais despertam diferentes emoções.
Caminho um pouco mais e me vejo diante da severa figura do
Arquiduque Alberto VII, da Áustria, retratado por Rubens em 1615. Suas roupas
negras, decoradas com detalhes dourados destacam-se no fundo vermelho. Ao lado,
o Conde-Duque de Olivares, segundo o mestre Velázquez. Passa a ideia de um
homem tímido, meio gordo e com aspecto avarento, ao contrário do seu vizinho da
direita, com cabeça altiva, cabelos grisalhos e espada em punho.
Do outro lado, observando uma terracota chinesa disposta no
meio da sala, o Cardeal Cristoforo Madruzzo, numa obra de do italiano Tiziano
que representa a efemeridade de tudo (juventude, poder, posses) num relógio
acomodado numa mesa ao lado do representante da igreja.
Quando passo à obra seguinte, não é a tela em si, reprodução
de uma obra de Paolo Veronese, que me surpreende, mas o comentário do jovem
observador. Ele nota uma pele de leão sobre o personagem retratado e corre
dizer à mãe que se trata de Hércules. Ela não acredita, mas ele insiste e a faz
ler a inscrição ao lado do quadro, comprovando o que havia dito e ganhando o
elogio de entendedor de artes. O que prova que basta o ambiente confabular a
favor que a criança aprende boas coisas.
Lendo as inscrições ao lado das peças expostas, noto que
Ricardo Jafet , advogado, banqueiro e industrial brasileiro, foi um dos grandes
doadores desse templo de devoção às artes. Ao lado dele, os Crespi (aqueles
mesmos que ergueram o que é hoje o Museu da Casa Brasileira), os Matarazzo (cujo
patriarca, Francisco, dispensa apresentações), os Penteado, os Pignatari e
tantos outros, imigrantes e nascidos nesta terra, que fizeram fortuna, mas que
souberam devolver um pouco do que ganharam ou receberam deste país em obras
como essa, que ficaram como prova da pujança desse país e desse estado,
sedentos de crescimento, embora às vezes titubeantes em seus ideais.
Retornando à busca por detalhes, eis que ele surge, um tanto
quanto acanhado, meio distraído, como se estivesse se observando num espelho, o
retrato do jovem Rembrandt, realizado pelo próprio, quando a barba ainda mal
lhe cobria o rosto. A roupa pesada indica o clima frio na época em que foi
pintado, assim como a boina, que pousa sobre a cabeça do jovem pintor. O cenho
meio franzido faz pensar que o resultado não agradava muito ao artista, ou
talvez que estivesse bem concentrado, para não perder nenhum detalhe que seus
olhos conseguissem captar. Com a boca fechada, é a luz de seu rosto quem fala.
Mas fala para quem? Para quem o observa, é claro, mas também para as terracotas
chinesas, que resolvo investigar, deixando para conversar com Van Dyck, vizinho
de Rembrandt, numa outra ocasião.
Tão belos, tão ricos de detalhes, esses guerreiros chineses
de terracota parecem chamar a atenção somente dos personagens das telas e de
mim. Esquecidos no meio do salão, sem conseguir chamar a atenção de nenhum
visitante, do alto de seus 2.600 anos, parecem invisíveis. Fantástica a
expressão de seus olhos, severos, com as sobrancelhas erguidas. Os braços,
saídos das bocas de dragões, que lhes tomam o lugar dos ombros, estão em
posição de ataque. Mas golpear o que? Talvez o ar, talvez desejem apenas
assustar.
Alguns passos mais adiante e um pequeno Corot me chama
atenção. Trata-se de um maço de flores, já meio murcho, mas nem por isso menos
intrigante, acomodado num copo. Um preanuncio, talvez, para outro Corot, bem
maior e mais impactante, que retrata uma jovem cigana, com a cabeça meio caída
de lado, esquecida de si mesma e tocando um bandolim, que os ouvidos mais
imaginativos até conseguem escutar. Em que será que pensava? Certamente não nos
Goyas que lhe sucediam, como o retrato do jovem cardeal (mais um!), com o loiro
de seus cabelos destacados pelo vermelho cardinalício de seus trajes.
Mas é o retrato da jovem Duquesa de Parma que me tira do
transe e me faz rir um pouco. Retratada como uma figura mitológica, deitada sobre
uma espreguiçadeira, com o globo terrestre sobre um dos cotovelos e um cesto
cheio de frutas e moedas no outro, parecia aguardar ansiosamente pelo término
do trabalho do pintor para atacar as frutas e gastar todas as moedas, de ouro,
é claro, provavelmente com um novo vestido, talvez mais largo, para acomodar
melhor toda aquela protuberância.
Se a Duquesa de Parma me fez rir, a jovem Angélica
Acorrentada, de Ingres, me faz sentir todo seu sofrimento, estampado na pele
alva que ilumina a tela, na cabeça caída para trás e nos olhos melancólicos. E
o Jovem Gabriel Godefroy, então, de tão real, parece saltar da tela, assim como
o peão com o qual brinca atentamente, sobre sua mesa de estudos. “A educação faz
tudo”, é o título da obra exposta de Jean-Honoré Fragonard, membro da secular
família produtora de perfumes e que cujo nome está nos 4 cantos da pequena
cidade de Gras. Faltou dizer que a educação faz tudo se for feito algo por ela,
que não pode ser um mero detalhe no meio da sociedade.
As paredes mudam de cor e percebo, no tom das telas, que o
detalhe começa a se desfazer. O Impressionismo começa a se fazer presente, com
magníficos exemplares de Joseph Turner e Monet. Mas nesse começo de
impressionismo, segundo o qual não é o detalhe que conta, mas a impressão
geral, são os jardins da Catedral de Salisbury que me chamam a atenção,
fazendo-me mergulhar na tela, caminhar por entre aquelas árvores e adentrar
naquele templo de orações. Tudo isso numa fração de segundos, que mais parecem
uma eternidade.
Mais uma mudança de cor nas paredes e percebo um Matisse,
que grita para ser visto. Uma jovem atende a seu pedido, enquanto os observo,
pacificado pela cena e esquecido do tempo, que parece não passar naquele
caminho gramado, salpicado de flores vermelhas, que terminam num vilarejo, lá
no fundo, bem na linha do horizonte. Mas será que termina?
De repente, as paredes tornam-se brancas. É uma indicação de
que os detalhes não são mais importantes. O abstracionismo passa a roubar a
cena e, no meio dela, destaca-se o retrato de um homem, feito por Picasso, com
as feições desestruturadas, irregulares. Parece triste, ou quem sabe apenas
compenetrado. Logo mais ali, um Ianelli dá cor à parede, mas sem qualquer
forma. É o detalhe que chega ao fim. O nada.
E pensando que a exposição havia chegado ao fim, corri para
o primeiro andar. Não permaneci muito tempo por lá. Apenas alguns minutos para
observar rapidamente as gravuras de artistas mais contemporâneos, como Claudio
Tozzi, Tomie Ohtake e Aldemir Martins, meu preferido entre eles. Além de mim,
um ou outro guarda e o silêncio, rompido pelo meu caminhar e minha respiração.
De repente, lembrei que havia pulado uma pequena seção do
segundo andar e voltei para lá. Já meio cansado, não me detenho muito tempo em
cada tela, mas não posso deixar de observar outro Picasso. Desta vez, o retrato
de Suzanne Bloch, aquele mesmo que foi roubado há alguns anos atrás, juntamente
com o Lavrador de Café, de Cândido Portinari. Felizmente, ambos foram
recuperados e retornaram para casa sem qualquer arranhão.
Meio titubeante se prosseguir, ou retornar em outro dia,
resolvi prosseguir e apreciar os 6 Modigliani que fazem parte da coleção, entre
os quais o famoso retrato de Leopold Zborowski. Que figura marcante, com o
rosto alongado e os olhos amendoados, como num máscara africana, fonte de
inspiração do pintor, italiano, mas pertencente à escola francesa.

Mas a grandeza da coleção do MASP ainda está longe de
terminar. Que dedo bom para as artes tinha esse Pietro Maria Bardi. Que força
de vontade tinha aquele paraibana arretado das comunicações. Que patrimônio
deixado para os brasileiros, que viajam para o exterior, lotam os museus de
Paris, Londres e Nova York e mal sabem que bem ali, na Avenida Paulista, a mais
paulista das avenidas, estão guardadas obras de impor respeito. A lista é tão
longa e os detalhes são tão numerosos que vale à pena terminar apenas dizendo
que, além dos detalhes aqui descritos, outros tantos podem ser observados em
simplesmente nove Toulouse-Lautrec (fantástico o retrato de Monsieur Pascal), cinco
Van Gogh (com especial destaque para o Passeio no Crepúsculo, que retrata tão
bem os típicos ciprestes que Van Gogh trazia tão bem para suas telas com suas
forte pinceladas), onze Renoir (como não se emocionar diante de Rosa e Azul?),
além de obras de Cézanne, Manet, Utrillo, El Greco e, para terminar, um
Botticelli.
Programa obrigatório para todas as idades. Para ver, rever e
valorizar o esforço de todos os que colaboraram e continuam a colaborar para o
crescimento desse local, criado por dois italianos, financiado pelo gênio de um
paraibano e apreciado pelo mundo todo.