
Hospedar-se no La Bastide St. Antoine (
www.jacques-chibois.com), em Grasse,
cidadezinha localizada há 13km ao norte de Cannes, no coração da Provence-Alpes-Côte d'Azur,
é uma daquelas experiências que todo ser humano deveria ter direito a
vivenciar.
Já tinha feito uma pesquisa no guia de viagens local e
identificado esse pequeno hotel, dirigido por um dos mais renomados chefes
franceses, Jacques Chinois, e sua esposa, como o melhor da região. Entretanto
como o valor era salgado, resolvi abortar a idéia e ir para uma opção mais
econômica. Na verdade, cheguei na cidade sem ter onde ficar e, depois de visitar
algumas das principais perfumarias da região (Grasse é um dos maiores centros
produtores de perfume do mundo), fui ao escritório de informações turísticas e,
um pouco em francês e um pouco em inglês, perguntei sobre os hotéis da
região.
Bem, a senhora que me atendeu começou a dar algumas opções e eu
perguntei se ela conhecia um tal de La Bastide. Quando ela ouviu esse nome,
arregalou os olhos, disse que era caro, mas ligou para ver se tinham
disponibilidade. De fato, não era barato, mas o quarto estava lá. Resolvemos,
entretanto, fazer uma reserva no Mercure, que ela afirmou ser um bom hotel,
nível 4 estrelas.
Com minha reserva feita e indicações de como chegar, peguei
o carro que havia alugado, um classe A, e me dirigi ao hotel. O problema é que,
no meio do caminho, não parava de ver placas com indicações para chegar no La
Bastide St. Antoine, de modo que resolvi dar uma paradigma lá para ver se era
tudo aquilo que diziam.
Ao atravessar os portões da propriedade,
percorrer uma pequena alameda ladeada por oliveiras centenárias e dar de cara
com o edifício de dois andares, não quis saber se ia pagar 3 vezes mais que no
Mercure, estacionei o carro, peguei minha mala e adentrei aquele ambiente
silencioso, com poucos quartos, quase familiar.
O hotel, com edifício
elegantemente decorado, fica no meio de 6 ha de olivais. Os quartos são
espaçosos e compõem-se de um ingresso, uma ampla sala de banho (o toalete é
separado) e um quarto de dormir com lareira, uma confortável cama e duas janelas
com vista para um vale verdejante de tirar o fôlego. Na minha opinião, aliás, só
essa vista já vale a hospedagem no local. Foi o que disse para o jovem que
preparou meu check-in e depois me acompanhou ao quarto e me mostrou tudo,
terminando com a vista para o vale. E ele agradeceu, orgulhoso, com um sorriso
de orelha a orelha. Alias, vamos combinar uma coisa, ficar hospedado em hotel
bom pode ser caro, mas que a gente é muito bem tratado, lá isso é. As pessoas,
nesses locais, parecem ter prazer em servir, quase como uma mãe a seu
filho.
A decoração de todos os ambientes, é claro, segue um estilo
provençal típico, com paredes verde camomila, gravuras antigas envoltas por
molduras douradas, estuques de gesso brancos e uma ou outra mobília de madeira
escura, como uma bela cômoda antiga que completava a ambientação do meu
quarto.
Claro que não podia deixar de aproveitar cada segundo dessa
hospedagem e, para começar, me permiti um banho de banheira de mais de uma hora,
com sais de banho e tudo mais. Na verdade, estava tão cansado que cochilei de
"papo"para o ar. Dormi e, depois que acordei, apesar de ter planejado dar uma
caminhada nos jardins do hotel, acabei ficando por ali mesmo, dentro do quarto,
esperando a noite cair e a hora do jantar chegar. E que jantar
...
Fabulosa a entrada, composta por um tomatinho cereja pelado, servido
sobre um leito de creme de zabaione, que não são deste mundo! Outras entradas se
seguiram, como uma sopa de brócolis. Tudo acompanhado por um fantástico
aperitivo à base de champanhe e suco de frutas, além de pãezinhos orgânicos de
sabor e crocrância inesquecíveis.
O serviço do local é singular, jamais
visto nem nos mais badalados restaurantes do Brasil, ou de outros países que já
visitei. Para começar, inventaram um menu somente para mim, o vegetariano de
plantão!
O rosário de pratos, sempre de porções pequenas, continuou com
um creme de vegetais com lascas de parmesão de sabor intrigante, provavelmente
provocado pelas raspas de trufa negra. Para acompanhar, um vinho branco
autóctone, muito suave e levemente frutado, que caiu muito bem com o creme de
vegetais.
O ambiente era agradável e, como o resto do hotel, decorado num
leve estilo provençal. Os talheres eram de prata e a porcelana de fino gosto, em
linha com o estilo do hotel. Os copos eram de vidro, o que é perdoável, já que
copos de cristal quebram facilmente.
Com poucas mesas ( max. 15) e
pessoas elegantemente vestidas, provavelmente pertencentes à alta sociedade da
região (o restaurante é bem conhecido e aberto não apenas a hóspedes) e que
parecem nãomse dar conta que lá fora existe uma crise. Tive a sensação de estar
vivendo com elas os últimos anos da belle epoque, período que antecedeu o início
da primeira grande guerra.
As vozes das conversas mantidas nas mesas ao
lado da minha ecoavam pelo salão, mas de um modo muito sutil. Enquanto isso,
observava tudo e aguardava o segundo prato, com posto por um creme quente de
cogumelos que conseguiu superar o anterior. Lascas de cogumelos davam maior
consistência a esse creme com sabor que minha memória identificou como sendo de
patê de fígado de ganso, impressão que descartei logo, já que havia avisado que
era vegetariano (espero que não tenham me enganado!). O vinho de acompanhamento
foi o mesmo do prato anterior e que, a esse ponto, já me fazia sentir calor e um
certo torpor e moleza nas pernas. Cheguei a suar!
O que veio depois foi
outro manjar dos deuses: um risoto de ervilhas, feito num caldo de cebola e
lascas de parmesão, banhado num óleo orgânico, feito pela casa, que queria
provar com um vinho tinto. Pois é, tanto queira que o sommelier veio me
oferecer outro vinho e acabei escolhendo um bordot, bem mais incorporado que o
branco e perfeito para o final do risotinho, que também ganhou a companhia de um
pão de azeitonas.
E o garçom, de tempos em tempos, num exemplo de extremo
zelo, vinha me perguntar se estava tendo uma noite agradável! Gente isso é
impagável, assim como a vista da janela do quarto que ocupava ...
Lá pela
tantas, eu me peguei observando a garrafa de água colocada sobre a mesa (Fonte
Saint Galmier). Tinha formato de garrafa de vinho e no rótulo uma inscrição
informava que era finamente, ou sutilmente gasada. Que luxo!
Cheguei no
restaurante às 20h30 e às 22:00 ainda estava lá, sem sentir o tempo passar, à
espera do último prato, da sobremesa e de um cafezinho para me ajudar a levantar
da cadeira!
E algum tempo depois dessa divagação, que não sei bem
precisar quanto, chegou o último prato. Tratava-se de um grelhado de vegetais,
devidamente separados uns dos outros para que os sabores não se misturassem. Na
primeira parte, consegui reconhecer um salsão, levemente temperado com hortelã e
acompanhado por um tomate pêra, tão doce e saboroso quanto o cereja da primeira
entrada. Escolhi para acompanhar um pãozinho de páprica.
A segunda parte
do grelhado de vegetais era composta por duas batatinhas elegantemente
acomodadas num leito de pequeníssimas vargens e ladeadas por uma porção de
tomates secos, sempre doces e com um fundo de cebola adocicada.
Por fim,
o prato de vegetais continha alguns aspargos mini, brotos de cenoura, tomatinhos
cereja de minúsculas dimensões e olivas negras igualmente pequenas e
saborosas.
Claro que eu tinha que deixar cair um pingo de óleo na toalha
de linho. Ufa, que desastre! E como se não bastasse um pingo, foram dois, sendo
o segundo de um tomatinho que explodiu ao ser garfado!
Chegou a hora da
sobremesa e eu já estava quase pedindo arrego! Sorvete de pêssego e manga,
acompanhados por pedaços das respectivas frutas e enfeitados por framboesas e um
raminho de manga. O pedaço de pêssego estava meio sem gosto, mas a manga era
mais doce do que todas as que já comi no Brasil.
Acham que acabou? Não,
ainda tem uns docinhos e o café. O primeiro docinho a ser devorado era de marrom
glacê, graciosamente adocicado. Já o segundo, foi um suspiro encimado por uma
framboesa (simplesmente o máximo). O terceiro foi um mouse de limão, que resolvi
comer antes do café, seguido por um mousse de chocolate, cujo sabor não me
atraiu tanto, e por outro docinho de chocolate, cujos componentes não consegui
identificar.
Café tomado, não resisti e ataquei outro suspiro, meu doce
preferido daquela noite. Tão fantástico quanto o primeiro. Aliás,
memorável!
E depois de quase duas horas e meia do melhor já tar da minha
vida, resolvi escrever na sala de leitura do hotel, que bem podia ser a sala da
minha casa. O lugar era aconchegante, embalado por uma música de fundo que
lembra um pouco o jazz do começo do século XX. Destacam-se no ambiente as duas
estantes cheias de livros que ladeiam a lareira. Alias, pena que não fazia frio,
pois aquela lareira acesa seria a coroação daquela noite que, para ser perfeita,
tinha que ser apenas um pouquinho mais longa. Por outro lado, se fosse mais
longa, talvez não prestasse atenção em tantos detalhes que, por sua natureza
fugaz, tornaram-se tão raros e marcantes. Resolvi, então, retornar para meu
quarto, o Châteauneuf (cada quarto do local, ao Neves de números, é identificado
com nomes de cidades francesas) e dormir o sono dos justos.
Acordado por um funcionário do hotel tirando a água
da chuva acumulada nos toldos do jardim, comecei a me preparar para me despedir
daquele local. Tomei um banho de ducha, arrumei minha mala exerci para o café,
servido no terraço da casa.
A mesa do café não era gigantesca como a de
hotéis igualmente gigantescos. Continha apenas alguns tipos de sucos, cereais,
iogurte e frutas, frescas e em compota. O que a distinguia das demais era o fato
de tudo ser produzido no local, como pude ver mais tarde, ao fazer um rápido
passeio pelos jardins da propriedade.
Claro que não se faz um bom café
sem café, que um gentil garçom me ofereceu, e pãezinhos, legitimamente
franceses, além de croissants cuja crocância começava na casquinha e ia até o
miolo. Definitivamente, nunca comi nada igual!

Terminei minha refeição,
meio sem apetite, depois da noite nababesca que a antecedeu, segui para meu
quarto, peguei a mala e, com a dor de quem estava sendo expulso do paraíso, fiz
o check-out e prossegui minha viagem.
Peguei o carro em direção ao centro
de Grasse, estacionei do dia anterior e comecei a caminhar pelo centro antigo,
com uma felicidade que transbordava pelos meus poros.
Logo no inicio
dessa caminhada, desemboquei numa praça de singular beleza, não muito grande,
rodeada por prédios antigos. No seu centro, um chafariz servia de apoio para uma
florista, bem robusta e já nos seus sessenta anos, que me fez lembrar o musical
My Fair Lady. A vida dela não parecia ser fácil, mas nem por isso ela parecia
ser menos feliz. Pelo menos, não era o que dizia o sorriso estampado em seu
rosto e com o qual brindava a todos os que passavam. Resolvi tirar uma foto da
sua rotina, ajeitando suas flores, que davam ainda mais beleza aquele
lugar.
Segui minha caminhada pela rua principal da cidade, sem deixar de
notar como tudo era limpo e organizado, o que prova que não é porque antigo está
longe de ser sinônimo de desleixo, conceito que, perdoem-me meus amigos
italianos, está bem presente por onde quer que a gente vá lá na Itália.
E
enquanto caminhava, era inebriado pelas fragrâncias dos perfumes locais,
misturadas com um cheirinho de pão saindo do forno, que não do seguia
identificar de onde vinha, mas que me fazia cada vez mais gostar daquele
local.
Caminhei por cerca de cinco minutos e cheguei à Catedral de Nossa
Senhora de Puy, uma construção que começou a ser erguida em 1200. Peguei um
pedaço da missa de domingo, num trecho em que o padre comandava todos num canto
que ecoava por entre aquelas colunas centenárias, atraindo a todos os que
passavam pela praça. Acabei me emocionando do mesmo modo como quando me vi
diante do Muro das Lamentações. Acho que a idade tem me deixado mais sensível às
coisas do quotidiano.
Fiquei ali a ouvir aquela música por alguns
instantes e a observar cada detalhe do local e das pessoas que estavam por lá.
De repente, formou-se na minha cabeça uma cena interessante, na qual, vestido de
monge, caminhava por aquele local, acendendo velas nos altares e arrumando uma
ou outra coisa fora do lugar.

Saí do meu transe e resolvi caminhar pela
igreja, assim como o monge da imagem que há pouco havia se formado na minha
mente. Foi então que encontrei numa das laterais da igreja 3 monumentais quadro
assinados por Rubens e realizados pelo mestre flamengo por volta de 1600. Um
deles retratava a ascensão da cruz, com um Cristo de face serena, como se não
estivesse sentindo dor. Um outro quadro figurava Santa Helena exaltando a Cruz.
Por fim, o terceiro, retratava o cortamento de Cristo, com um semblante cansado
e triste, mas sem dor ou revolta.
Também digno de menção, é o imenso
crucifixo que, ao contrario de outras igrejas que já visitei, não fica instalado
do altar maior, que acomoda uma imagem, provavelmente de Nossa Senhora, mas na
lateral da nave central.
Mas a cidade tinha mais a ser visto além dos
muros dessa igreja e de lá segui para o Museu Provençal. Infelizmente, não pude
fazer fotos de seu interior, onde podem ser vistos roupas, jóias e tecidos que
retratam o quotidiano do local entre 1700 e 1800.
Não fotografei, mas
anotei na minha mente cada detalhe de como as peças são expostas, já que estou
trabalhando na produção de um exposição que, de certo modo, tem a ver com as
pecas expostas no local. Bem, mas isso é tema para outra história.
Já
meio atrasado, segui para a Galimard, perfumaria ativa desde 1747, onde tive uma
interessante aula de quase duas horas sobre produção de perfumes e que culminou
com a formulação da minha primeira fragrância, história que conto em outra
ocasião.