domingo, 18 de setembro de 2011

NATIVIDADE

Tinha apenas quinze anos quando o destino decidiu privá-la da companhia de seus pais e, por meio de parentes paternos, deixá-la sob a proteção de insigne instituição religiosa. Permaneceu nesse ambiente de singular harmonia, protegida da incompreensão humana, por cerca de dois anos. Durante esse tempo, costurava, tocava instrumentos musicais, cantava e encantava a todos com sua graciosa presença.

Deixou esse seu segundo lar que a vida havia lhe dado apenas para construir outro, agora na companhia de um jovem viúvo e de seus filhos, que abraçou com o mesmo amor que dedicaria aos outros sete que adviriam da união com seu esposo, homem de senso prático e que ganhava o seu sustento e de sua família executando os mais variados trabalhos em madeira.

Criatura de espírito angelical, caracterizado por singular doçura no trato com as pessoas, ficou radiante, como toda mãe, ao saber que dali a alguns meses daria a luz a seu primeiro filho. A gravidez, embora exaurisse seu delicado corpo, transcorreu tranquilamente e o rebento veio ao mundo sem quaisquer anomalias, sob o teto de uma velha tia, habitante de cidade não muito distante do local onde vivia o casal e para onde o dedicado esposo a havia levado para que ali contasse com toda a assistência e atenção que esses momentos requerem.

A casa, de extrema simplicidade, contava com apenas dois cômodos. Num deles ficavam amontoados os móveis da família, enquanto que o outro servia de abrigo para alguns animais e mantimentos. Seus ocupantes dormiam sobre esteiras, cobertores e peles de cabra estendidos pelo chão, que também serviram de leito para a jovem quando chegou o momento de seu filho vir ao mundo, auxiliada por uma experimentada profissional (leia-se parteira).

O nascimento dessa criança – um verdadeiro querubim caído dos céus, de grande beleza, semblante sereno, rosáceas bochechas e nenhuma marca ou ruga na pele, habituais nos recém-nascidos – envolveu a todos em grande alegria, chegando a comover alguns até as lágrimas.

Espalhou-se, então, a notícia de que a jovem havia sido visitada pelos anjos e que seu primogênito era um enviado de Deus, provocando a curiosidade dos habitantes daquele local que, em romaria, foram conhecê-lo, encontrando-o acomodado num berço de palha e algodão e espiado, de tanto em tanto, pelos animais do cômodo ao lado. Entre os visitantes, inúmeros parentes e vizinhos, que não deixaram de levar seus presentinhos para o recém nascido, de acordo com as possibilidades e costumes locais.

Essa história atravessou os séculos, ganhando um adereço aqui, outro ali, e acabou chegando até nós envolta por uma áurea fantasiosa, como se seu personagem principal precisasse ter uma origem miraculosa para ter se tornado uma das pessoas mais lembradas do mundo, em todos os tempos.

Para quem ainda não se deu conta, os personagens dessa história são Maria, José e o menino Jesus, que veio ao mundo da forma mais tradicional possível, sem, contudo, deixar de encantar a todos desde seu primeiro minuto de vida e por todos os séculos que se seguiram, por meio de sua mensagem de amor ao próximo, que não deixa de vir à tona em todo nascimento.

domingo, 11 de setembro de 2011

BALANÇO DE 30 ANOS DE CONFLITO

Jornais e televisões do mundo todo lembram hoje os 10 anos dos atentados nos Estados Unidos, que ceifaram em poucos minutos as vidas de cerca de 3 mil pessoas e causaram traumas irreparáveis em familiares e amigos das vítimas, bem como nos espectadores localizados em todo o mundo.

Anterior a esse incidente e a ele diretamente ligado, estão mais de 350 mil mortos e feridos em 8 anos de Guerra Irã-Iraque (para os iranianos, esse número passa dos 750 mil). Outros 100 mil soldados iraquianos perderam suas vidas nos 7 meses de conflito da Guerra do Golfo e, em 7 anos de Guerra no Iraque, fala-se em mais de 100 mil mortes de civis e um país devastado.

Porque o mundo fica tão abalado com as 3mil mortes que ocorreram em território americano e não com as mais de 550 mil (que podem muito bem ter passado de 1 milhão) que ocorreram e continuam ocorrendo no oriente médio?

Para essas pelo menos 550 mil vítimas parece não haver necessidade de derramar lágrimas. Parece que seus familiares não ficaram traumatizados. Parece que os territórios envolvidos nesse conflito não ficaram marcados. Parece que não há necessidade de evidenciar em jornais e revistas todo esse horror.

Não se trata de defender um lado em detrimento de outro, mas de abrir os olhos diante do descalabro de pessoas que acham que para suas ações nunca haverá uma reação.

E pensar que esse jogo de aliados e antagonistas tem suas peças distribuídas de acordo com interesses, no final das contas, puramente econômicos e no qual o petróleo é o ator principal ...

No final das contas, o único derrotado desses conflitos é a própria humanidade.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

ELOGIO PARA A LOUCURA

Ao criticar os desmandos da Igreja Católica da época, eminente a passar por um de seus mais difíceis e negros momentos, caracterizado pela Reforma e conseqüente contra-Reforma, Erasmo de Roterdã postula em seu Elogio da Loucura, livro escrito em 1509 e considerado uma das obras-primas da literatura universal, que a loucura é apreciadora da auto-depreciação. Vai mais além e, utilizando alegorias tiradas da mitologia grega, estabelece que a loucura, educada pela inebriação e pela arrogância, é irmã da vaidade, da adulação, do esquecimento, do prazer, da demência, do destempero, da falta de vontade e do sono mortal.

Martinho Lutero, contemporâneo de Erasmo de Roterdã, afirma que até os quarenta anos o homem permanece louco, mas não se dá conta disso. A partir dessa idade, passa a ter consciência de sua loucura, mas quando isso acontece, a vida já passou. Independentemente de se enxergar ou não como louco, na visão de Lutero, somos todos loucos.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, insigne filósofo alemão do século XIX, parece estar de acordo com Lutero, ao afirmar que a loucura não seria a perda abstrata da razão, mas, segundo suas próprias palavras, um simples desarranjo, uma simples contradição no interior da razão, que continua presente. Partindo desse raciocínio, o indivíduo louco passa a não ser mais encarado como alguém privado de razão, mas como alguém com uma razão ou lógica próprias, tornando possível pensar a loucura como pertinente e necessária à dimensão humana, que só se realizaria através dela.

Já para a psicologia, segundo uma definição que encontrei na Wikipedia e que de certo modo conflita com os pensamentos de Hegel, de Lutero e mesmo de Erasmo, uma vez que, alguns mais, outros menos, somos todos destemperados, vaidosos, aduladores, auto-depreciativos e, portanto, loucos, a loucura ou insânia é uma condição da mente humana caracterizada por pensamentos considerados "anormais" pela sociedade. É resultado de uma doença mental, quando não é classificada como a própria doença. Nesse caso, seriam normais somente aqueles que pensam do mesmo modo e loucos os que se atrevem, inconscientemente ou não, a desafiar essa razão.

Diante dos fatos que pude testemunhar ao longo dessa minha já não tão curta vida, tenho que discordar da psicologia, abraçar os pensamentos de Erasmo, Lutero e Hegel e acreditar que somos todos um pouco loucos. De fato, parece que nunca foi tão verdade o ditado popular que afirma termos todos um pouco de médico e de louco. O lado médico é, talvez, o mais evidente, pois todo mundo tem uma receita caseira para este ou aquele mal. Com o advento da internet, então, tem paciente que lê meia dúzia de linhas sobre uma determinada doença e já se acha no direito de discutir de igual para igual com indivíduos que estudam seis anos para conseguir o diploma, fazem dois anos de residência e continuam estudando o resto da vida, de modo a estarem sempre atualizados nos seus campos de especialização. E provavelmente é aí que se evidencia um dos primeiros casos de demência da atual sociedade. Sim, pois só sendo louco para ler um texto e já se achar médico suficiente para questionar o parecer de um médico de verdade.

Mas se essa fosse toda a loucura do mundo, ainda assim teríamos salvação. Entretanto, há casos mais graves, que passam pela corrupção na política, cujos feitos são tão inacreditáveis, que só podem ser comandados por mentes insanas. Fernando Collor, por exemplo, recentemente processou Ciro Gomes por ter enlameado seu nome. Ora, uma pessoa que tem no currículo um pai assassino, um ex-cunhado matador de aluguel, que gritava para todo mundo ouvir que tinha nascido com aquilo roxo e que foi escorraçado da presidência da república por crime de corrupção (fato nunca antes visto neste país!) não pode ser normal ao processar alguém só porque lhe chamou de safado, playboy e “cheirador de cocaína”. Talvez possamos absolvê-lo do crime de cheirar cocaína ...

E os exemplos de loucura na política não param por aí. Basta lembrar das forças ocultas que fizeram Jânio Quadros renunciar ao cargo, ou de sua filha, Tutu Quadros, que serviu de intérprete do próprio cachorro na redação de um livro (essa era louca mesmo!). E o que dizer do Lula, que comparou Dilma a Jesus Cristo durante a última campanha presidencial, ou do Maluf, que teria dito “quer estuprar, estupra, mas não mata”. E não podemos nos esquecer da Marta Suplicy que, ao ser questionada sobre as filas nos aeroportos, durante sua gestão como Ministra do Turismo, teria dito: Relaxa e goza!

Saindo do âmbito político, os casos de loucura se multiplicam mais rapidamente do que coelhos. Basta um giro pela cidade, em qualquer dia da semana, e observar o que os motoqueiros fazem no trânsito e contra suas próprias vidas. Isso sem falar nos motoristas, que vão de um lado para o outro (assumo minha parcela de culpa e me incluo nesse grupo), tentando chegar primeiro no semáforo fechado logo adiante. E os caminhoneiros, que dirigem quase sem dormir, ou os motoristas de ônibus que vão com tudo em cima de quem estiver na frente. Nem os pedestres se salvam dessa insanidade, jogando-se na frente dos carros, por acreditarem-se donos do mundo se estiverem sobre uma faixa de pedestres (isso até é verdade, mas apenas se o semáforo estiver aberto para os pedestres).

Mas há também loucos que se drogam por não aceitarem a dura realidade que a vida lhes impõe e os loucos que traficam drogas, colaborando para que outros entrem em ruína. Há maridos que surram suas esposas para compensar as humilhações a que são submetidos pelos patrões ou colegas de trabalho. Há crianças que humilham os que lhe são diferentes, embora, às vezes, o belo resida exatamente nas pequenas diferenças. Há aqueles também que são tão obcecados pelo trabalho, que não se dão conta da vida ao seu redor e aqueles que no trabalho mostram todo o seu destempero. E o que dizer dos criminosos, que ao serem pegos com a boca na botija, assumem-se loucos para se livrarem da cadeia. Pior talvez sejam seus advogados que, em troca de dinheiro, aceitam defendê-los e os fazem assumir essa loucura.

Enfim, não há como não citar os chefes de estado, ditadores que mandam e desmandam, que tem o poder de vida e de morte sobre as pessoas e que efetivamente privam inúmeros do direito básico da vida, assassinando-os ou impedindo que trabalhem, que tenham acesso à educação, que possam se alimentar, que possam cuidar de sua saúde, que possam ter amigos, uma família. Os representantes dessa categoria são tantos que poderia passar o resto da minha vida listando-os todos, mas alguns são a própria personificação da loucura, como Saddam Husseim, Muamar Kadaf, Adolf Hietler, Slobodan Milosevic, Osama Bin Laden e George W. Bush Filho (bem, é mais correto que este último seja classificado na categoria dos imbecis ao invés da de loucos).

Mas a loucura também tem seu lado positivo e, por que não dizer, corajoso e criativo. É graças a ela que temos hoje mais de 800 telas brilhantemente produzidas por Vincent Van Gogh. É também pela loucura desafiadora de homens como Alberto Santos Dumont que milhões de homens e mulheres hoje se locomovem de maneira razoavelmente rápida e segura. É pela loucura de jornalistas incrivelmente competentes que temos acesso em tempo real a informações provenientes de campos de guerra ou locais devastados pela raiva louca da natureza. É pela bravura louca dos bombeiros que vidas são salvas, às vezes colocando em risco suas próprias vidas. E é, talvez, por causa dessa mesma bravura meio insana que os bandeirantes desbravaram esse país, num caminho parcialmente seguido séculos depois pelos irmãos Vilas Boas.

E para aqueles que pensam que esse ensaio sobre a loucura não passa de uma divagação literária de alguém que não é médico e, ao que me consta, também não é louco, destaco uma notícia veiculada recentemente na Revista Piauí, intitulada “A epidemia de doença mental”, segundo a qual, cresce assombrosamente o número de pessoas com transtornos mentais e de pacientes tratados com antidepressivos e outros medicamentos psicoativos. Segundo essa matéria, muito bem redigida por Márcia Angell, uma pesquisa conduzida pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos constata que tem louco saindo pelo ladrão: 46% de um grupo de pessoas, estudadas aleatoriamente, possuem algum sintoma estabelecido pela Associação Americana de Psiquiatria e que incluem os transtornos de ansiedade (que incluem as fobias e os estresses pós-traumáticos), os transtornos de humor (parece que aqui já batemos de frente com o conceito de que depressão e loucura não têm nada a ver), os controles de déficit de atenção e os transtornos causados pelo uso de substâncias, com álcool e drogas.

Da onde vem tanta loucura? Bem, dizem alguns que tem origem no desequilíbrio de certas substâncias químicas existentes no cérebro, como a serotonina e a noradrenalina e, nesse caso, medicamentos podem ajudar. Entretanto, como os segredos do cérebro ainda são pouco conhecidos, não se sabe bem ao certo se esses medicamentos podem fazer mais mal do que bem. Pelo sim e pelo não, melhor também contar com o apoio psicológico, que talvez seja o melhor de todos os remédios. Mas para isso, é de fundamental importância que familiares, sobretudo, no limite de suas capacidades, dêem-se conta dos desvios de comportamento de seus parentes, desde pequenos, e procurem colaborar para seu ajuste, compreendendo as razões que os levam a se comportar de modo diferente, lembrando que a diferença só será negativa somente se for prejudicial a quem a possui. Afinal de contas, com tanto louco por aí, todo esforço para ajudar a diminuir a fila é válida.