sábado, 21 de novembro de 2020

A HISTÓRIA DE UM LIVRO QUE SE ASSEMELHA À HISTÓRIA DE CINDERELA

“Note como o ser humano frequentemente erra nos seus julgamentos”

Havia acabado de fazer a última revisão de seu livro “A ciência na cozinha e a arte de comer bem” quando, aproveitando a visita de Francesco Trevisan, conhecido professor de literatura, Pellegrino Artusi pediu ao caro amigo que desse uma olhada em sua obra e exprimisse sua opinião. Para sua surpresa, o trabalho de anos, recolhendo receitas populares, feitas com ingredientes locais, recebeu a seguinte avaliação: “Este livro não terá o menor sucesso”.

Desanimado, mas não de tudo, Artusi achou que seria oportuno obter o parecer de outras pessoas. Então, entrou em contato com uma importante editora de Florença, na esperança que, sendo os proprietários praticamente da família, tivessem maior condescendência com sua obra.

Convidou-os para uma refeição, de maneira que conhecessem sua obra na teoria e na prática. Todavia, novamente, recebeu um balde de água fria: “Se a obra tivesse sido compilada por Doney (famoso chef do final do século XIX), nesse caso e, somente nesse caso, o sucesso seria indiscutível”.

Artusi, que há época já contava com 71 anos, retrucou aos comensais: “Se esta obra tivesse sido escrita por Doney, provavelmente ninguém entenderia nada, como acontece com o livro O Rei dos Cozinheiros (Il Re dei Cuochi), enquanto que, com este manual, basta uma colher na mão e qualquer um é capaz de preparar grandes pratos”.

Para os editores, considerou depois o insistente senhor, não importa se um livro é bom ou ruim, se tem conteúdo, ou não. O importante é que leve um nome famoso na capa para vender bem!

Resolveu, então, sair do seu território e foi buscar a opinião de uma importante editora de Milão, da qual recebeu um curto e grasso: “Não nos ocupamos de livros de culinária”.

A este ponto, tomou a decisão de assumir o risco integralmente. Enquanto negociava valores com a gráfica, porém, fez uma última tentativa e perguntou ao dono se não se interessaria pela obra. O potencial parceiro, porém, propôs-lhe o pagamento de irrisórias 200 liras, além da cessão de todos os direitos.

Isso foi a gota e Artusi seguiu com a ideia de autopatrocinar uma primeira tiragem, mas de apenas 1.000 cópias.

Já com os filhotes em mãos, o escritor e empresário foi contatado por um amigo para que doasse para um evento beneficente 2 exemplares de um livro que, acreditava o amigo, ele tivesse. O problema é que não tinha os livros requeridos e, então, resolveu mandar 2 exemplares do seu manual de culinária. Antes não o tivesse feito, pois ficou sabendo que os ganhadores, ao invés de aproveitarem o conteúdo da obra, procuraram bancas de jornais interessadas em adquiri-la com o objetivo de fazer algum dinheiro.

As desventuras de Artusi não tinham chegado ao fim. Mandou uma cópia do livro a uma importante revista de Roma, da qual era associado, para que fizessem uma resenha, ajudando na divulgação. Todavia, a revista restringiu-se em citar o nome do livro entre os recentemente recebidos. E nem isso parecem ter feito de bom grado, pois o nome citado estava errado!

Foi então que, finalmente, apareceu uma boa alma para falar bem de sua obra. Trata-se do Professor Paolo Menegazzza, que gostou tanto do livro a ponto de desejar-lhe 100 edições! Artusi, porém, com os pés no chão, disse que já ficaria contente se sua obra chegasse à segunda edição. O professor, porém, para surpresa (desta vez positiva) de Artusi, citou a obra em duas de suas palestras.

Os ânimos começavam a voltar e, ainda que lentamente, unidade após unidade, o livro começava a encontrar interessados, até que a primeira edição se esgotou e, sempre com cautela, o autor mandou imprimir mais 1.000 cópias, que se esgotaram mais rapidamente.

Seguiu-se, então, a terceira edição, com 2.000 cópias, e depois a quarta e a quinta, cada uma com 3.000 cópias. A estas, seguiram-se, em intervalos relativamente breves, seis outras edições, cada uma de 4.000 cópias. Como o sucesso a este ponto não lhe parava de sorrir, vieram outras edições de 6.000, de 10.000 e de 15.000 cópias.

Em 1911, ano do falecimento de Pellegrino Artusi, a obra, que começou com 475 receitas, estava na 15º edição e contava com 790 receitas, entre sopas, caldos, entradas, molhos, massas, carnes, peixes, doces, licores e curiosidades.

É um dos três livros mais lidos na Itália, depois de As Aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi, e Os Noivos, de Alessandro Manzoni. Foi traduzido para diversas línguas, como inglês, holandês, português, espanhol, alemão, francês e russo. Um verdadeiro best seller que, segundo uma pesquisa feita pela Readers’ Digest, em 1978, havia então atingido a marca de quase 2 milhões de cópias vendidas.

Ao morrer, não tendo filhos, Artusi deixou os direitos do livro a seus dois cozinheiros que, com a renda, viveram com tranquilidade para o resto de suas vidas.

E aí? Vai desistir no primeiro não?


🇮🇹🎩