quinta-feira, 21 de junho de 2012

UM HOMEM E MUITOS SONHOS ...

Assumi o compromisso de escrever para a edição de 2012 da Itália em São Paulo sobre o primeiro automóvel fabricado no Brasil. Ocorre que, no curso da minha pesquisa, descobri uma família com o empreendedorismo gravado em seu código genético, de modo que falar sobre a Romi-Isetta, sem falar um pouco de Americo Emilio Romi e seus filhos é como iniciar uma história já pelo clímax.

Filho de imigrantes italianos, vindos para o Brasil nos idos de 1890, em fuga da crise econômica que assolava a Itália recém unificada, o fundador das Indústrias Romi, nascido no interior de São Paulo, foi registrado Americo por vontade do pai, mas sempre chamado de Emilio pela mãe, com quem passou mais tempo durante sua infância.

E se foram as oportunidades de trabalho que trouxeram os Romi para o Brasil, também foram elas que os levaram de volta para a Itália. Trabalhando como maquinista na companhia de trans Mogiana, emprego que perderia por conta das leis de proteção ao trabalhador brasileiro, o pai de Americo Emilio Romi acabou contraindo bronquite asmática que, sem cura na época, fê-lo retornar com a família para sua terra natal, onde encontraria um clima mais propício para o tratamento de sua doença e um ambiente no qual o filho poderia melhorar sua formação acadêmica e, consequentemente, ter acesso a boas oportunidades de trabalho.
Na escola, o jovem Romi demonstrou ter vindo para esse mundo com a missão de vencer e formou-se no curso técnico de eletrotécnica, no ano de 1914, com nota máxima.

Nesse mesmo ano, estoura a 1ª. Guerra, da qual a Itália toma parte no ano seguinte. Para a empreitada, convoca todos os jovens em idade militar, o que inclui o protagonista desta história, mesmo contra a vontade da mãe, que alegava ser o filho brasileiro (tese frágil, já que o que contava era o jus sanguinis, princípio pelo qual é a nacionalidade dos pais que determina a dos filhos).

Durante sua campanha, envolve-se num ataque das forças inimigas e, por bem pouco não perde a vida. E como nada na vida acontece sem razão, durante sua permanência no hospital militar, apaixona-se pela enfermeira que o tratava, viúva de outro combatente de guerra e mãe de um menino que viria a se tornar seu cúmplice em todas as empreitadas da sua vida futura.

Cumplicidade também envolveu o casal Americo e Olimpia, ou simplesmente Pia, como era carinhosamente chamada pelo marido. Ele trabalhava incessantemente, primeiro só e depois com a ajuda dos filhos, e ela sempre a cuidar da casa e das finanças da família, controlando com pulso firme todos os dispêndios, evitando desperdícios e, certamente, com isso contribuindo para os projetos de Romi e de seu enteado, Carlo Chiti.
Mas não foi na Itália que o casal quis escrever sua história, bem sim no Brasil, onde Americo Romi havia nascido. E lá vão eles em busca da terra de oportunidades e que ainda hoje demonstra ser o horizonte de tantos italianos.

O ano era 1923 e o destino a capital paulista, que já àquela época parecia oferecer mais oportunidades. E foi assim que “Seu” Emilio, como ficou conhecido de todos aqui no Brasil, abriu seu primeiro negócio, uma oficina de reparação de veículos, na esquina da Avenida Paulista com a Consolação.

O primeiro negócio foi muito bem, sobretudo porque funcionava num horário em que todos os concorrentes estavam fechados. Entretanto, uma rebelião tenentista que tomou conta da cidade em meados de 1924 pôs fim a esse capítulo da história dos Romi, dado que a oficina do nosso protagonista foi requisitada por tropas governistas, tendo sido devolvida ao final da revolução completamente em frangalhos.

Depois de um breve período na Alfa-Romeo, decide abrir outra oficina, desta vez no centro da cidade. Essa empreitada também não durou muito, já que o sócio, apaixonado por uma vizinha, roubou o dinheiro do caixa e fugiu para o Rio.

É nesse momento que o embrião da atual Indústrias Romi começa a se formar. Após o incidente que o obrigara a vender sua segunda oficina, “Seu” Emilio resolve fazer um giro pelo interior de São Paulo, em busca de um lugar para se estabelecerem, sem sobressaltos.

O novo lar dos Romi era Americana, onde Americo conseguiu um emprego numa concessionária Chevrolet, trabalho que levou com determinação até o estouro da crise econômica de 1929, quando seus empregadores viram-se obrigados a cortar pessoal e a diminuir salários. Acreditando-se um peso para os patrões e não sendo homem de trabalhar como empregado, mas como patrão, resolve pedir demissão e dar vazão a mais um sonho.
E o sonho agora era o de montar nova oficina, desta vez para atender à demanda da indústria sucro-alcooleira concentrada em Santa Bárbara, logo ali, a poucos quilômetros de Americana. No começo, debaixo de muita desconfiança, eram prestados serviços de reparos, mas com o tempo, a oferta englobou o fornecimento de peças de reposição, lubrificantes e pneus, até que, após passar por mais uma turbulência (Revolução Constitucionalista de 1932), decide ir além e fabricar máquinas agrícolas inteiras (semeadeiras, adubadeiras etc.) que, debaixo de muita dedicação, grande tino comercial e avanços tecnológicos que chegaram ao Brasil (máquinas de solda, que substituíram o rudimentar processo de caldeamento), tiveram grande sucesso, não apenas no mercado brasileiro, mas em diversos países da América do Sul.

Mas aí veio a 2° Guerra, a falta de material e tempo para repensar o destino dos negócios. Perceberam, então que, com a Guerra, a florescente indústria brasileira, assim como a Romi, carecia não somente de matérias primas, mas também de peças mecânicas, o que fazia sobrecarregar enormemente o trabalho das oficinas, que careciam de tornos para dar vazão a seu trabalho. E foi aí que resolveram fabricar tornos, cerne do que é a atual atividade do grupo.

Falando assim, parece que foi tudo linear, mas não foi não. Os desafios foram muitos, mas quem nasce empreendedor consegue superá-los com voracidade. E com essa força de vencer, foi produzido o primeiro torno (que por questão de imagem, foi apresentado a mercado como sendo o n° 101), ao qual seguiram-se cerca de 1.700 por ano até o final da guerra (número que superou 2 mil unidades cerca de 10 ano depois e que chegou a ser exportado para mais de 50 países).

E depois dos tornos, seguiu-se a busca contínua por tecnologia, a fabricação de tratores, a abertura de um jornal, a gestão da prefeitura de Santa Bárbara (que passou por um salto de qualidade no mandato de Americo Romi) e, quando parecia ter feito de tudo, Americo e seu enteado resolveram produzir no Brasil seu primeiro automóvel.

A inspiração foi uma reportagem lida por Carlo Chiti no ano de 1955 e que tratava de um pequeno automóvel recém lançado na Europa, o Isetta, que caia como uma luva no sonho de ambos de fabricar um pequeno utilitário, seguro, de baixo custo e que fizesse crescer o mercado e as riquezas nacionais.

Com design aerodinâmico revolucionário, em forma de gota, uma única porta frontal, que facilitava o acesso ao seu interior, cabine inteiramente envidraçada, como nos caças a jato (possibilitando grande visibilidade), amplo uso de materiais leves, como o alumínio (resultando em elevada eficiência energética), ergonomia avançada (com todos os comandos ao alcance da mão) e cuidados com a localização do centro de gravidade (resultando em grande estabilidade), o Isetta, projeto do engenheiro aeronáutico Ermenegildo Pretti e de seu assistente, Pierluigi Raggi, acomodava confortavelmente duas pessoas e, com certo aperto, até três. Tinha 2,25m de comprimento por 1,40m de largura. O motor, bem distante dos carros populares de hoje, possuía apenas 236 cilindradas, mas fazia até 30Km com um litro de combustível. Outra característica interessante do pequeno Iso (nome da fabricante italiana, estabelecida nos arredores de Milão) residia na bitola traseira, que era a metade da dianteira.

O câmbio do Isetta possuía quatro marchas para frente e uma de ré. Quanto à manutenção, dizem que era fácil e que o pequenino conseguia trafegar nas piores estradas e ruas, em qualquer tempo.

Bastante robustos, participaram das 1000 Milhas de 1954 (tradicional corrida com circuito de rua, abolida há algumas décadas depois de um grave acidente) e atingiram uma média de 79Km/h, resultado superior ao da vencedora da primeira prova.

Pois bem, Americo e Carlo foram à Itália, compraram dois Isettas e, tendo obtido autorização da Iso, após dissecarem o veículo e compreenderem como funcionava, centímetro por centímetro, assim como já haviam feito nos outros setores em que atuavam ou atuaram, em 30 de junho de 1956 passaram a produzir o primeiro automóvel de passeio com 72% de índice de nacionalização (os demais, então fabricados, eram montados a partir de peças completamente importadas das casas matrizes). O nome dele, nada mais justo, era Romi-Isetta.

Mas a ousadia no campo técnico não teria valido de nada se o tino comercial de Chiti não tivesse idealizado uma campanha promocional (impensável nos dias de hoje) que incluiu um desfile de 16 carros, a partir da primeira concessionária, estabelecida no centro de São Paulo (e também em outras cidades), com benção episcopal e voltinha com a primeira dama do estado, Dona Eloá Quadros, bem como aparições no cinema e na televisão, fazendo do pequeno possante a coqueluche do momento, condição refletida no slogan da campanha: O lado bom da vida é o lado de dentro de um Romi-Isetta.

Manchetes dos principais jornais da época eram unânimes em dizer: “A Romi se antecipou aos projetos governamentais de Juscelino, estabelecendo um marco na industrialização brasileira”.

O Romi-Iseta também entrou na onda feminista da época, já que, de fácil manuseio, mostrava que dirigir também era coisa de mulher, que viu no pequeno um meio de transporte para ir às compras, fazer visitas e passeios.

Em 1959, depois de uma bem sucedida negociação com a BMW, que passou a fornecer os motores, é lançado do Romi-Isetta 300 de Luxe, com importantes modificações que visavam aumento de desempenho e grande economia de combustível.

Em 1960, a consagração: Romi-Isettas vindos de todo o país chegam à nova capital brasileira. Era a Caravana de Integração Nacional, recebida por JK em pessoa, que não se furtou de dar uma volta num modelo coupè.

Em 1961, com o Plano Nacional da Indústria Automobilística (focado em veículos para 4 ou mais passageiros e não nos compactos) em pleno vigor e a presença de diversas casas automobilísticas no cenário brasileiro, como Vemag, VW, Simca, Willys, Toyota e FNM, a Romi decidiu que era hora de cessar a produção e, em 13 de abril de 1961, o último Romi-Isetta, um exemplar branco e amarelo-limão, deixa a linha de produção.

Encerrou-se naquele dia um marco na história deste país. Um produto totalmente adiante de seu tempo (basta que pensemos nas atuais discussões sobre a economia de combustível e a redução da emissão de gases tóxicos).

Cerca de 2 anos antes, porém, as cortinas já se haviam fechado para o mentor de tudo. Alguém que fazia questão de tratar os funcionários como companheiros, co-participantes, co-responsáveis. Só assim, segundo seu modo de ver as coisas, é que dariam o máximo. E foi dentro partindo dessa óptica que 2 anos antes de deixar esse mundo, Emílio e Olímpia doam todos os seus bens pessoais à Fundação Romi, entidade criada com o escopo formar, assistir, apoiar e, assim, fazer o mundo evoluir. Função que, em certos pontos, deveria ser cumprida pelo governo, do qual Americo Emilio Romi nunca se achou em situação de precisar.


No cortejo fúnebre, pelo menos 15 mil pessoas. Na lápide, um trecho da oração de São Francisco: ...pois é dando que se recebe.